É possível ser feminista e cristã ao mesmo tempo? O que leva um discurso evangélico a criar uma associação entre o Demônio, o feminismo e Frida Kahlo? Tentamos refletir sobre o tema, mesmo depois do "trauma" de ter ouvido ontem que quem fez o mestrado em Comunicação não sabe o que é ter feito um mestrado...
Arte: Karla Vidal |
Não gosto de analisar o discurso dos outros porque, ao se
fazer isso, corre-se o risco de tratar o discurso como sendo o próprio
indivíduo, o que não procede porque não há signo ou discurso que consiga dar
conta plenamente nem das coisas, nem dos acontecimentos, nem das pessoas.
Nesta perspectiva, a narração é uma tentativa mais ou menos bem-sucedida
de correr atrás do tempo perdido e a descrição reflete nosso esforço de passar
uma borracha em cima da infidelidade de nossas memórias.
Mas, esse preâmbulo é só pra dar um verniz científico na
seguinte frase: “Não dá pra reduzir uma pessoa ao que ela fala ou escreve”.
Outra coisa chata de quem se mete a analisar o outro por
meio do discurso dele é a tentação de resumir a análise a comparações com
outros discursos e outras pessoas. Nas redes sociais, a exemplo do Facebook,
isso já se tornou praticamente uma regra de etiqueta (falta de).
Os facebookianos vão longe em suas comparações, construindo
verdadeiras genealogias que trazem numa ponta a pessoa que proferiu um
determinado discurso e no início da genealogia figuras míticas ou de cunho
religioso, incluindo Deus e o Satanás.
Um exemplo interessante do que estou dizendo é um diálogo,
do qual reproduzirei trechos, extraído de um grupo de discussão de uma igreja
evangélica. O diálogo é gerado em torno da possibilidade de mulheres assumirem
o papel de pastoras nas Igrejas.
Uma das personagens do diálogo (Karla) apoia o pastorado feminino e
começa a ser atacada por discordantes. Em um dado momento, uma das discordantes
insere o alvo numa formação discursiva feminista, algo como:
- Feminista cristã?, pergunta a discordante sobre o pastorado feminino.
-Sim, com total equivalência, responde Karla .
A partir daí, os discordantes tentam construir a tese de que
estabelecer uma relação entre os discursos feminista e cristão é um
contrassenso e apelam para comparações:
- [Feminista cristã] É tipo judeu nazista ou negro racista.
Depois disso, começa a ser desfiado um rosário de insultos,
mencionando que uma mulher que se denomina feminista cristã nunca abriu uma
bíblia na vida e deve se arrepender de seus pecados e entregar todo o coração a
Cristo.
Porém, o trecho mais interessante do diálogo é o seguinte:
O personagem Gabriel, com base na ideia de que existe uma
equivalência entre pessoa e discurso, erige uma Formação Discursiva ilustrada
pela ideia que ele possui a respeito de Frida Kahlo e insere Frida numa
genealogia à qual pertencem as feministas, que ele considera um mal a ser
combatido.
Mesmo que não tenha sido intenção dele, sua estratégia
discursivo-genealógica nos leva a supor que a árvore genealógica de Frida Kahlo
e, portanto, das feministas, tem como ancestrais versões da mulher associadas
ao Mal e, em última instância, ao pecado e ao demônio.
Essa estratégia discursiva, tão comum atualmente nas redes
sociais, esforça-se por apagar a história das pessoas, seus sofrimentos,
contradições, mas também prodígios e resplendor, reduzindo-as a um bloco
discursivo que, muitas vezes, não tem sequer relação com o que estas pessoas
viveram.
E, quando se anula a existência de uma pessoa, projetando-se
nela formações discursivas, no mais das vezes cristalizadas e irrefletidas, abre-se
caminho para a intolerância e a exclusão.
Os discursos de ódio, nas redes sociais, vêm dessa tentativa
de converter a riqueza da complexidade e
da contradição humanas em avatares esculpidos a partir de retalhos de preconcepções
selvagens.
Esta postagem foi escrita em homenagem ao aniversário de Ana
Carolina Morais, que discorda de mim há décadas, ajudando-nos a manter uma
amizade sólida como são as águas vivas do Espírito.
Também homenageia Karla Sabryna, feminista, cristã e Karla Vidal, ambas filhas de Frida Kahlo.
Um dos textos mais lúcidos da atualidade.
ResponderExcluirO comentário de uma mulher assim guerreira ressalta o brilho do texto. Beijos
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