5 de setembro de 2015

Quando conectar se torna mais importante do que refletir: o caso da fotografia do refugiado Aylan




Não sei se essa sensação é só minha, mas parece que a comunicação está se tornando um atestado da incapacidade de responder ao questionamento: O que devo/posso dizer?

E diante do anonimato de milhares de possíveis seguidores anônimos, que se reúnem, para afiar os vícios nas redes sociais, tentamos silenciar a pergunta por meio das conexões absurdo-lógicas. Na falta de respostas, contentamo-nos em estabelecer conexões pautadas num conhecimento enciclopédico constituído por verbetes que são um híbrido de reflexão e irreflexão.

A enciclopédia chinesa, descrita por Jorge Luis Borges, ganha existência concreta na virtualidade das redes, com o agravante de que a lógica e a razoabilidade têm sido substituídas pela conectividade.
Conectar se torna mais importante do que refletir. E falo isso tentando fugir da nostalgia do convívio com a atmosfera do Iluminismo onde se acreditava que uma ideia precisava ser despida do preconceito, da superstição e revestida do contraditório, açoitada por opiniões divergentes, até que se tornasse afiada como uma espada japonesa de Hattori Hanzō.

O impacto da associação de referências parece se sobrepor ao esforço de confrontar ideias, que, por sua vez, implica o esforço maior de assumir o risco de sair desse confronto carregando estilhaços de ideias alheias.

O confronto de ideias, comumente chamado de reflexão, implica assumir vários riscos, dentre os quais o de ser convidado a esperar em silêncio enquanto outra ideia rival se expõe. O gesto puro e simples de conectar flerta com o descompromisso. Na reflexão, a etiqueta diz que enquanto um fala o outro silencia. A conectividade banalizada permite que todos falem ao mesmo tempo: na superfície, impera o ruído das feiras medievais e, no íntimo, o silêncio ou, melhor dizendo, a mudez do cordeiro imolado, ou melhor ainda dizendo, a mudez do indiferente imolado.

A imagem do pequeno refugiado Aylan, cujo cadáver encalhou em uma praia turca, não consegue descansar em paz. Extrai-se dela a aura de humanidade, e injeta-se o caráter de signo anônimo e ostensivo apto a um sem fim de conexões que, ao mesmo tempo que revelam nossa carência de paz, demonstram nossa sede pelo citacionismo. Uma cultura que tenta blindar sua psiquê reduzindo as imagens ao anonimato e, simultaneamente, abre sua mente à estética do choque expõe um trilema: a tentativa de se equilibrar (ou de acreditar que é possível equilibrar-se) sobre os pilares do sadismo, do masoquismo e da invulnerabilidade. 

Citar: algo que é mais que um mero dizer, um quase fazer que não faz, o que, supostamente, o tornaria imune a consequências sociais e jurídicas. Citação que se escora na conexão de ideias descontextualizadas ou melhor dizendo, recontextualizadas de maneira irrefletida, isto é, sem margem para o contraditório, a espera e o silêncio analítico. Citação que abre mão da síntese e contenta-se em desfiar ora o rosário das concordâncias ora o das discordâncias. E, neste caso, acaba sendo mais importante do que refletir resistir ou fazer o interlocutor desistir, como se estivesse numa Prova de Líder do Big Brother Brasil.

Ideias contentam-se em ser fantasias carnavalescas. Eleger a vencedora ou tripudiar em cima da perdedora vira o alvo do embate (que ainda se ilude de que é um debate).

O rico das conexões é o potencial que elas têm de retirar as ideias de sua zona de conforto. Afinal, a conexão cria fissuras por onde afloram aspectos represados pelo senso comum ou pelas convenções institucionalizadas por acadêmicos, juristas e profissionais midiáticos, possibilitando a luta contra a asfixia e a paralisia da reflexão.

Mas, muitas vezes, o citacionismo conectivo das redes sociais abre fendas na represa das ideias, mas coagulam o jato d’água ao injetarem no debate (embate) de ideias tirania, intolerância e autossuficiência, três elementos que, decididamente, não entram na composição da pedra filosofal angular do edifício do debate democrático-humanista. 

Neste sentido, as Time Lines tornam-se, por vezes pedras de necrotério, onde o morto é condenado à eterna autópsia, enquanto o bisturi da conectividade não se desembriaga. Mas, felizmente, a farra da conectividade, a exemplo das festas dionisíacas, não se prolongam por mais de uma semana. Isso porque existe uma lei da natureza que nenhuma revolução copernicana pode abalar: o vinho acaba e as cortinas se fecham.

Confira ilustrações feitas ao redor do mundo sobre a tragédia do garoto Aylan, refugiado sírio

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