Quem é mais digno de ser ouvido? Beethoven ou Maisa?
O cineasta José Padilha afirmou em entrevista que, no Brasil, não havia mais sensibilidade para identificar o absurdo. Mas, o absurdo é um fantasma a ser enfrentado pelas sociedades que decidem enfrentar o desafio de tornar realidade a democracia.
"[...] Os olhos de Maysa são dois não sei que, dois não sei como diga, dois oceanos não-pacíficos"., diria Manoel Bandeira.
Quem é mais digno de ser ouvido? Beethoven ou Maisa? (refiro-me
a Maisa Carrossel – nhemnhemnhem e não Maysa Matarazzo)
Horrorizar-se diante do aumento da frequência de crimes que conjugam
crueldade extrema a motivação fútil é o resultado
Não sei se a questão é a insensibilidade diante do absurdo
contemporâneo. Talvez, a sensibilidade fique paralisada diante da suposta falta
de alternativas que nos impinge um espírito democrático asfixiado; um final de
relacionamento mal resolvido com o Feudalismo, onde, como lembra o antropólogo
Norbert Elias, o cenário achava normal a grandeza e elegância dos nobres
dividirem a cena, tranquilamente, com a peste bubônica e as esquinas exalando o
cheiro de merda, cagada por cus que não se constrangiam em se expor
publicamente.
Sinto, às vezes, como se fôssemos uma sociedade dos
ressentidos. Nos ressentimos por não termos Beethoven entre nós e, ao invés
dele, termos Maisa Nhem-Nhem-Nhem. Ou talvez isso não faça a menor diferença
porque queremos ter o direito de exercitar a promiscuidade do ouvir, sem que
isso signifique nossa excomunhão do seio da intelectualidade, seio murcho e
decrépito (acrescentem-se outros adjetivos que ajudem a apagar a sede de
reduzir o absurdo a pó).
O horror apático diante da conjugação criminosa entre crueldade
extrema a motivação fútil reflete a impotência de uma sociedade que ainda não
sabe como administrar a síntese, acostumada que está a conviver com a
desigualdade extremada. Uma sociedade que está tentando fazer emergir uma noção
de transporte público do abarrotamento de veículos avizinhados por
penitenciárias-ônibus. Mas, nesse caso, os presos-passageiros não são custeados
pelo Governo.
A questão que se coloca é a do mérito, que reflete o
questionamento sobre quem tem o direito de ocupar um determinado lugar no
espaço público. E fico pensando quantos rounds seriam necessários para que
Beethovem levasse Maisa a nocaute.
A sociedade brasileira está acostumada a enxergar o cidadão
como alguém que precisa ter seus gestos e gostos tutelados: uma leitura disfuncional
do Código Civil. Olhamo-nos uns aos outros como se fôssemos civilmente
incapazes: de sentir, de ouvir, de falar. E, certamente talvez, por isso o
mérito seja por nós conjugado à autoridade, nos moldes do Antigo Regime. Assim,
só pode ter opinião ou escolha aquele amparado por títulos de posse e de
nobreza.
Nesse sentido, assustam as expressões culturais que acham
lugar na sociedade abrindo mão do lastro da intelectualidade e do mérito. O que
fazer diante de expressões que, assumindo-se merdas, pleiteiam espaço de
legitimidade e voz?
De algum modo, esse aparente caos do desmérito reflete uma
tentativa de buscar, no terreno da cultura, espaço para fazer valer o princípio
da igualdade, previsto pelo artigo 5º da Constituição. O direito à vida e à liberdade independe de
raça, cor, sexo, classe social, situação econômica, orientação sexual,
convicções políticas e religiosas.
Pergunto-me se o aparente caos da cultura Nhem-Nhem-Nhem não
é uma reação orgânica a uma doença social que aflige o Brasil a 515 anos: a
ordem perpétua. No fundo, nossa sociedade investe na ideia parasita de que tudo
está na mais perfeita ordem, como os quadros medievais em que miséria e opulência conviviam como naturalidades, cridas como determinadas
pela “justiça” divina.
Numa sociedade em que se vende a ideia de que a busca por
remédios para seus males é uma afronta, o organismo produz seus anticorpos como
pode, tentando debelar o insustentável peso da mentira da ordem democrática que
é ordem, mas está longe de ser democracia, embora esteja tentando descobrir o
que é isso, pedindo ajuda ao caos, força que flerta com a criatividade, mas
também com a violência.
Não sei se concordo com Hegel quando ele diz que não há como
atingir a razão sem atravessar a antessala (corrigida automaticamente pelo
editor eletrônico de textos, único “ser vivo” com capacidade de compreender o
uso do hífen) do caos.
Quem é mais digno de ser ouvido? Beethoven ou Maisa?
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