29 de março de 2015

Cinderela e o sapato de cristal da descalça Menina sem Nome





Com exceção da atuação de Cate Blanchett, o filme Cinderela parece uma tentativa de revestir de carne e osso o desenho animado que serviu de versão ao conto-de-fadas.

Minto: no filme, houve um pouco mais de espaço para reflexão sobre a situação feminina num período em que a falta de um homem provedor reduzia a mulher ao papel de vulnerável apêndice da vida social. Nisso, tanto Cinderela quanto sua madrasta estavam no mesmo barco, pois esta era uma viúva com duas filhas solteiras e a aquela uma adolescente órfã.

Não que haja justificativa para o comportamento da madrasta de Cinderela, mas, diante do fantasma da opressão que pairava sobre as mulheres viúvas e órfãs em fins da Idade Média (período que parece servir de pano de fundo ao conto), o cinismo e o ardil que ornamentam a falta de caráter da madrasta são reflexos do instinto de sobrevivência.

Ontem, assisti ao remake de Cinderela e, hoje, li e assisti à primeira de uma série de reportagens do Jornal do Commercio sobre a digitalização de arquivos do IML, em Recife. Entre estes arquivos, encontra-se o caso da “Menina sem Nome”, referente a uma criança assassinada na capital pernambucana, na década de 70, e que, até hoje, não foi identificada.

Pensei que a bela Cinderela, órfã e solteira, poderia ter, facilmente, virado uma Menina Sem Nome e considerada indigna dos sonhos que a cultura patriarcal reservava às mulheres: sonhos que envolvem tornar a mulher o mais lindo e submisso troféu para os homens. As mulheres vítimas de violência são, comumente, consideradas indignas de ter um nome. A diferença entre o conto-de-fadas e a realidade: Não houve sapato de cristal capaz de devolver à Menina Sem Nome sua identidade perdida (roubada?).

Diante dos olhares compenetrados e dos suspiros que observei tanto em mulheres quanto em homens, que assistiam hipnotizados ao filme, percebi que a cultura atual busca alguma forma de combinar os apelos do Patriarcado e os da Revolução do Gênero. Sim, porque Cinderela não deixa de ser uma mulher à frente do seu tempo, que ousa comparecer a um baile, sem companhia masculina, e oferecer-se ao Príncipe. Ao mesmo tempo, a personagem é calçada pela, por vezes, irritante repetição de um convite a ser gentil e corajosa,  que, por vezes, adquire o sentido de engolir calada a miséria e a humilhação sem contestar a ordem social vigente.


Como Cinderelas distópicas, muitos jovens atualmente enfrentam sua jornada de busca optando por atalhos de reavivamento de idealismos tacanhas que ignoram as conquistas emancipatórias e almejam o retorno ao primado masculino, onde a potência feminina – representação da força pungente da alternativa – viva trancafiada em burcas simbólicas, que podem ser vestidas tanto por “Cachorras” quanto por “Amélias”: duas faces da tentativa de perpetuar a safra de “Meninas sem Nome”. 

Confira a reportagem de Felipe Vieira (Jornal do Commercio) sobre a digitalização de arquivos mortos do IML, incluindo aqueles relativos à "Menina Sem Nome".

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