Com exceção da atuação de Cate Blanchett, o filme Cinderela
parece uma tentativa de revestir de carne e osso o desenho animado que serviu
de versão ao conto-de-fadas.
Minto: no filme, houve um pouco mais de espaço para reflexão
sobre a situação feminina num período em que a falta de um homem provedor reduzia
a mulher ao papel de vulnerável apêndice da vida social. Nisso, tanto Cinderela quanto sua
madrasta estavam no mesmo barco, pois esta era uma viúva com duas filhas
solteiras e a aquela uma adolescente órfã.
Não que haja justificativa para o comportamento da madrasta
de Cinderela, mas, diante do fantasma da opressão que pairava sobre as mulheres
viúvas e órfãs em fins da Idade Média (período que parece servir de pano de
fundo ao conto), o cinismo e o ardil que ornamentam a falta de caráter da
madrasta são reflexos do instinto de sobrevivência.
Ontem, assisti ao remake de Cinderela e, hoje, li e assisti
à primeira de uma série de reportagens do Jornal do Commercio sobre a
digitalização de arquivos do IML, em Recife. Entre estes arquivos, encontra-se
o caso da “Menina sem Nome”, referente a uma criança assassinada na capital pernambucana,
na década de 70, e que, até hoje, não foi identificada.
Pensei que a bela Cinderela, órfã e solteira, poderia ter,
facilmente, virado uma Menina Sem Nome e considerada indigna dos sonhos que a
cultura patriarcal reservava às mulheres: sonhos que envolvem tornar a mulher o
mais lindo e submisso troféu para os homens. As mulheres vítimas de violência são, comumente, consideradas indignas de ter um nome. A diferença entre o conto-de-fadas e a realidade: Não houve sapato de cristal capaz de devolver à Menina Sem Nome sua identidade perdida (roubada?).
Diante dos olhares compenetrados e dos suspiros que observei
tanto em mulheres quanto em homens, que assistiam hipnotizados ao filme, percebi
que a cultura atual busca alguma forma de combinar os apelos do Patriarcado e
os da Revolução do Gênero. Sim, porque Cinderela não deixa de ser uma mulher à
frente do seu tempo, que ousa comparecer a um baile, sem companhia masculina, e
oferecer-se ao Príncipe. Ao mesmo tempo, a personagem é calçada pela, por vezes, irritante
repetição de um convite a ser gentil e corajosa, que, por vezes, adquire o sentido de engolir
calada a miséria e a humilhação sem contestar a ordem social vigente.
Como Cinderelas distópicas, muitos jovens atualmente
enfrentam sua jornada de busca optando
por atalhos de reavivamento de idealismos tacanhas que ignoram as conquistas
emancipatórias e almejam o retorno ao primado masculino, onde a potência
feminina – representação da força pungente da alternativa – viva trancafiada em
burcas simbólicas, que podem ser vestidas tanto por “Cachorras” quanto por “Amélias”:
duas faces da tentativa de perpetuar a safra de “Meninas sem Nome”.
Confira a reportagem de Felipe Vieira (Jornal do Commercio) sobre a digitalização de arquivos mortos do IML, incluindo aqueles relativos à "Menina Sem Nome".
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