Foto: Cláudio Eufrausino. |
O gesto de doar uma roupa, um brinquedo usado, algum tipo de
alimento poderia ser, antropologicamente, explicado como uma forma de aplacar o
sentimento de culpa da classe média que, no Brasil, é classe média baixa:
situada numa espécie de ilha que ocupa o centro do abismo da desigualdade
social, cujos extremos são ocupados por quem está abaixo da linha da miséria e
por quem traz o luxo amarrado aos calcanhares.
A classe média costuma encarar a doação como forma de se
livrar do que não serve. A bola doada é murcha, o tênis furado, a roupa
rasgada, a boneca descabelada. E nisso não deixa de haver uma válvula de escape
para a frustração ocasionada pelo desejo de pertencer à elite, desapontado pela
realidade cotidiana, que flerta com a pobreza.
Mas, felizmente, esse estigma está sendo abrandado pelo
sopro de um futuro, onde doar significa mais a subversão do que a reafirmação
das hierarquias.
Mesmo em tempos de crise, as pessoas de classe média baixa
têm feito do exercício de doar uma forma de construir istmos que abram caminho
pra elas deixarem as ilhas flutuantes de inércia, que pairam sobre o abismo da desigualdade
extremada.
Infelizmente, a classe média também tem o hábito de
construir istmos que a comunicam com as elites. Normalmente, o cimento dessa
construção são juros do cartão de (des)crédito e no cheque especial calçados em
promessas do tipo: “Prometo não me iludir que sou rico”.
O que importa mesmo nisso tudo é que, a despeito do
recrudescimento de preconceitos e da onda reacionária que assola o País, a
empatia está crescendo entre os brasileiros. Com isso, as doações estão se
transformando: deixando de ser compostas por aquilo que “não serve” para se
tornar o investimento em algo que toma o lugar do supérfluo nas vidas de quem
tem condição de vida melhor.
Aliás, tenho fé que, num futuro não tão distante, o termo
doação perderá a conotação improdutiva de “pena” e ganhará o sentido de
solidariedade produtiva que está presente no termo “crowdfunding”.
Neste sentido, as redes sociais têm sido importantes aliadas
de uma redistribuição de renda que não espera pela boa-vontade de quem pertence
a elite, mas cujo coração mora abaixo da linha da miséria.
A doação, em breve, creio eu, ganhará o sentido de
financiamento coletivo, mostrando que o Brasil, apesar do fantasma do “jeitinho
brasileiro”, é criativo e generoso o suficiente para promover a distribuição de
renda sem depender da votação do Congresso Nacional ou da sanção de qualquer
usurpador.
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