(Des)prezados,
Sou Bárbara, chamada de Iansã pelos cultos iorubanos. Vivi no século III, na Nicomédia, onde hoje fica İzmit, cidade turca próxima à divisa entre Instambul e Ancara.
Fui martirizada por me recusar a renegar a fé cristã.
Contudo, escrevo não para tratar de questões religiosas, mas sim pela necessidade de rememorar como forma de manter
acesa a chama da razão ameaçada pelos fantasmas que saem dos abismos da mente
humana para lhe roubar o oxigênio.
Meu pai foi obrigado a me matar, pouco antes da
execução da pena à qual fora condenada, que seria a decapitação (por isso sou retratada
segurando uma espada. É costume cristão retratar os mártires apresentando pistas do seu martírio.). Se não houvesse feito isso, meu pai teria de assistir à filha ser
estuprada por soldados romanos.
Dezoito séculos depois, as mulheres do Oriente continuam
conhecendo o terror vivido por mim, como exemplifica Alepo, onde elas se
suicidam para não serem estupradas em meio à guerra civil.
Sou Januário, da Itália, e também fui martirizado, no século III,
por resistir à perseguição romana.
Sangue meu foi guardado num receptáculo e,
segundo a tradição católica, liquefaz-se três vezes por ano. Quando isso não acontece,
é prenúncio de grandes catástrofes, a exemplo da peste negra no século XVI e da
Segunda Guerra, em 1939.
No último dia 16, meu sangue, contido na relíquia, não se
liquefez.
Eu, no Oriente. e eu, no Ocidente. Ambos vítimas do
poder que tenta colonizar o espírito, ignorando as fronteiras da dignidade
humana.
A violência e a guerra são o estertor desse esforço brutal de colonizar
o incolonizável.
O momento atual conhece refugiados que batem à porta do Ocidente e os refugiados
que começam a sentir necessidade de se trancar nas celas em que o pânico está
tentando transformar os países europeus...
Refugiados que fogem para fora e aqueles que fogem para
dentro... E as redes sociais fingindo o milagre da multiplicação de peixes no
deserto.
Há pelo menos 500 anos, como lembra Renato Janini Ribeiro,
a imagem do Oriente vem sendo demonizada pelos países ocidentais. Isso sem falar
nas intervenções que reconfiguram fronteiras e realocam etnias, gerando
conflitos que, neste momento, valem-se do terrorismo para reivindicar direito
de voz aos fantasmas.
O fanatismo dos extremistas orientais tenta se vingar desses
séculos de publicidade negativa imposto pelo Ocidente, empregando o Terrorismo como "direito" de resposta . E o Ocidente insiste em combater o Terror dando continuidade
à propaganda de deturpação da imagem do Oriente.
Se amor com amor se paga, terror com terror não se apaga.
Enquanto o Ocidente achar que suas vítimas são mártires e que as vítimas do
Oriente são estatísticas, esse circuito vicioso e maldito não terá fim.
Eu, Bárbara e eu, Januário, ambos continuamos sendo martirizados pelo poder que ignora a individualidade e a dignidade em nome dessa
oposição mesquinha e miserável entre Ocidente e Oriente, replicando a falida
divisão forjada pela Antiguidade Clássica entre Cultos e Bárbaros.
Enquanto o espelho do Ocidente não dignificar os habitantes
do Oriente, o fantasma da guerra não achará descanso para seus ossos patifes.
Feliz Natal!
Pátria Celeste, 24-12-2016
Bárbara de Nicomédia e Januário de Benevento
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