Fonte: Jornal Livre |
O ideal da plena autonomia, uma das heranças do Iluminismo,
assim como outras utopias passa por um momento de autoquestionamento. O “governo ou regra de si”, tradução possível para esta palavra composta por dois radicais de
origem grega, ao analisar suas pegadas e imaginar seus possíveis horizontes,
inevitavelmente dialoga com outras “nomias” como a heteronomia (governo do
outro) e a anomia (ausência de governo). E, neste diálogo, preconceitos,
opiniões e símbolos, associados a estas ideias, são ativados, reativados e
desativados num movimento caracterizado por forte dose de oscilação e
incoerência.
Um dos símbolos mais comuns associados ao ideal de autonomia
é o imaginário da ”máquina sem homem”. A máquina que possa agir completamente
por si: um tipo de exterminador do futuro ou Matrix... Esse imaginário traz
como subdiretório a ideia de que o perfeito funcionamento de um mecanismo
autônomo requer ausência de sentimento.
O Aikidô, que embora seja chamado de arte marcial procura
banir a guerra da composição de suas impressões digitais, questiona esta visão
sobre uma autonomia que reduz o indivíduo autônomo a um autômato.
O automatismo não é algo inerente às máquinas como se
costuma pensar. É um projeto calcado em anseios, esperanças, medos e terrores
como costumam ser os projetos humanos. Em seu ápice, o automatismo poderia ser
interpretado como propriedade de uma máquina que é simultaneamente produtora e
produto. Outra forma de interpretar o automatismo pleno é encarando-o como momento
em que a autonomia se olha no espelho e percebe que deixou de ser autonomia
para se tornar anomia.
Por meio de sua simbologia, o Aikidô reencontra espaço para
abrigar no seio da autonomia a heteronomia. Isto equivale a enfrentar a
tendência de silenciar o componente de passividade que habita a autonomia como
se para governar a si mesmo o ser humano precisasse ser alguém que age sem se submeter
de forma alguma à ação do outro.
No Aikidô, a pessoa que aplica a técnica (uke) e a que
recebe (tori) tornam-se um composto, como se fossem dois radicais que se unem
para formar uma nova palavra com um sentido que remete aos significados dos
radicais isolados, mas o transcende. É possível pensar o uke e o tori como
radicais envolvidos numa reação química onde ambos assumem o papel de reagentes
e de produtos.
O sucesso de uma técnica aplicada, no Aikidô, depende não da
submissão de um “oponente” como se este fosse um tipo de matéria-prima
controlada e deglutida por uma máquina “vencedora” que busca de assenhorear do
produto, reduzindo o “vencido” a um tipo de dejeto. No Aikidô, a técnica é um rio
que caminha em fluxo e contrafluxo. Isto quer dizer que a queda ou submissão é
oferecida ao companheiro de luta como oportunidade para que ele encontre, no
espaço e no tempo, uma relação harmoniosa entre seus limites e seus deslimites.
A recíproca é verdadeira no que se refere a quem aplica a técnica.
Esta relação circular que o Aikidô estabelece entre o ativo
e o passivo redesenha o ideal da autonomia, que deixa de ser vista como refúgio
solitário de autômatos no deserto da anomia, e passa a ser a constatação de que
não dá pra ser autônomo sendo somente a polaridade ativa, dominante e controladora.
Não há liberdade para um ímã refém de um
só dos polos. O governo de si mesmo requer capacidade para encontrar, com
auxílio do outro, a energia potencial que habita a submissão e a queda, energia
esta castrada pela visão distorcida de que cair é por si mesmo um mal (quando,
na verdade, cair ou estar de pé podem ser benéficos ou maléficos dependendo da
maneira como se cai e como se permanece de pé ).
De acordo com este ponto de vista, ser ativo significa não
derrubar o outro, mas ajudar o outro a cair e, logo em seguida, aprender com
quem está no lugar de “passivo” como se reerguer, como se reativar. Esta
consciência do proveito que se pode tirar do fluxo harmonioso entre queda e
reerguimento pode diminuir a angústia que nos aflige quando acreditamos que
para ser autônomos precisamos ser autômatos.
E, neste percurso, vale a pena rever a ideia de Maquiavel de
que é melhor ser temido do que ser amado, pois quem está disposto a aprender
tem mais coragem de amar e menos medo de temer.
O Aikidô foi desenvolvido por Morihei Ueshiba (1883-1969), entre
1930 e 1960 e, combinando diferentes artes marciais, substitui a tradicional
lógica do ataque e contra-ataque pelo movimento circular entre os polos passivo
e ativo, dissipando a agressividade e o medo ligados à ideia de que só é só é
possível estar em uma dessas polaridades.
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