25 de fevereiro de 2012

"Vou morrer em trinta dias": as últimas e primeiras palavras de Paulo Coelho

"Natureza morta com caveira”, de Philippe de Champaigne (1602-1674). No Musée de Tessé)



Um amigo, depois de alguns anos sem me reencontrar, olhou pra mim e disse: "Quanto tempo, menino! Pensei que só iria te reencontrar numa sessão espírita!".

Ao ouvir isso, senti uma tranquilidade que, de tão destoante da minha personalidade, beirava a morbidez. Comumente, minha reação seria a de ficar indignado e mandar esse meu amigo ir agourar o cão ou então ir cheirar o seu cu (o cu dele próprio e não o do cão). É que quando somos envolvidos, de repente, por verdades que precisamos esquecer para preservar a integridade de nosso aparelho psíquico, a primeira reação é a de sacar uma arma e disparar uma saraiva de palavrões.

Fala-se dos anticorpos, mas se esquece de que o esquecimento é, talvez, a principal defesa do nosso organismo. Porém, enquanto os anticorpos nos defendem de agentes estranhos, o esquecimento nos defende de agentes familiares como a frustração e a morte.

Paulo Coelho soube há algum tempo que seu coração estava 90% obstruído e que tinha somente trinta dias de vida. Mas, a vida reserva surpresas...

Outra reação comum, ao se sentir na nuca o bafo gélido da morte, é a Síndrome de Rei Davi. Entre os sintomas desta síndrome está uma certa mania de perseguição. Começa-se a se pensar sobre pessoas que anseiam nossa morte e sobre os motivos deste anseio. Antes de morrer, os afetados por esta síndrome, vestem-se de alvo (uma pré-mortalha). Acreditam que a morte seria o coroamento dos ataques de dardos envenenados de invejas e maldições enviadas por inimigos que esperariam nossa morte para sair triunfantes do ocultamento.

"Ele prometia ser tanto, mas morreu sendo tão pouco, kkkkkkkkkkkkkk": os acometidos pela síndrome de Rei Davi temem menos a morte do que este tipo de escárnio post-mortem.

Quão triste é enterrar uma pessoa como se ela fosse uma promessa frustrada, um coito interrompido. Cristo estava certo ao dizer a seus apóstolos: "Deixem que os mortos enterrem seus mortos".

Normalmente, os que enterram os que morrem são tão ou mais mortos do que os falecidos, pois negam aos que se vão a chance de serem restituídos do que, em vida, foram sonegados: a grandeza anônima. Passa-se anos lutando para se alcançar uma vitória. Quando se consegue, o esforço de anos é jogado no porão do anonimato e só se escreve nas memórias póstumas a "glória" de se ter ganho uma coroa de louros, que murchará...

"Ela tanto conquistou, mas morreu na merda...". Os mortos que enterram seus mortos tentam disfarçar a fedentina de sua alma putrefata, roubando o perfume das vitórias que os falecidos alcançaram em vida. Pouco importa se estas vitórias foram ou não reconhecidas. Mozart, por exemplo, foi enterrado com as pompas de um indigente, mas isso não fez da sua vida um gesto em vão.

Os mortos-vivos acendem velas em seus smartphones para homenagear Steve Jobs, enquanto enterram vivos aqueles que não conseguem deixar a marca morta de uma pegada na calçada da fama. Na verdade, a homenagem a Steve Jobs tem menos de consideração e mais de um instinto sádico: a vontade dos mortos-vivos de jogar a última pá de terra sobre uma estrela.

Um marido tentou assassinar sua amada esposa com mais de cinco tiros. Depois, ele para se certificar de que ela ficaria bem morta, a amarrou no pára-choque traseiro do carro e a saiu arrastando pela estrada afora. Surpreendentemente, ela sobreviveu...

Um rapaz levou um tiro no peito. A medalha de Santo Expedito que ele trazia não sobreviveu ao tiro, mas ele sim...

Outro rapaz levou um tiro. Sua cabeça se tornou um mausoléu para a bala. Ele continua vivo e bem...

Santo Estevão morreu apedrejado. Quanto mais seu rosto era desfigurado pelas pedradas, mais ele refletia beleza e glória, causando ira e desconcerto nos que lhe martirizavam...

Paulo Coelho passou por uma cirurgia, por meio da qual seu coração foi desobstruído. Esta cirurgia também cortou o circuito do relógio que fazia a contagem regressiva para sua morte....

Inútil é tentar fazer da morte o ajuste de contas entre a frustração e a surpresa. Os mortos que enterram seus mortos procuram, na hora do sepultamento, tirar a prova dos nove da conta do sucesso ou do fracasso. Mas, como incluir na conta os sucessos implícitos aos fracassos e os fracasssos implícitos aos sucessos?

Darwin foi um gênio (seja lá o que esta palavra queira dizer), mas na conta de sua genialidade existem momentos de depressão, de erro e de paralisia. Mas isso não impediu que ele fosse surpreendente. Menos devido a suas descobertas científicas do que a seu esforço para colher o sucesso implícito em seus fracassos.

É muito bonito ver a gratidão de Paulo Coelho a Deus por todos os sonhos que realizou em vida. Mas, também é belo poder valorizar os novos sonhos que se erguem de nossas frustrações. Essa força de ressurreição evita que nos conformemos em ser e fazer dos outros retratos monstruosos do pleno sucesso ou do pleno fracasso, sem direito à surpresa proporcionada pela implicitude.

A morte, de algum jeito, planta em nós o impulso de resgatar o sucesso que se esconde no fracasso (ou o contrário). Mas, é opção de cada um pagar o preço desse resgate ou se tornar cúmplice do sequestro.



Paulo Coelho fala sobre diagnóstico médico que lhe deu trinta dias de vida

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...