18 de junho de 2011

Enigma dos trigêmeos: talento, ignorância e mediocridade

Fonte: O Blogsquim
 
Uma das grandes devoções das ciências humanas tem sido investigar as pegadas deixadas pelo talento humano ao longo de seu calvário-esperança, isto é a história. Mas, um dos maiores talentos tem sido negligenciado: o de ser voluntariamente medíocre ou, em outros termos, o de inibir o potencial do próprio talento. 

Uma sociedade em que as pessoas levam às últimas consequências o potencial de seu talento -ou em que as pessoas procuram atingir ao máximo a felicidade, entendida como maximização do prazer em detrimento da dor - acabaria por criar ilhas de “prosperidade” cercadas pelo mar da injustiça. Esta é uma forma de, assumindo o que há de risco e de rico na paráfrase, interpretar parte do universo de reflexão do economista John Rawls (1921-2002).

A questão não é a de prestar uma homenagem à falta de talento, mas sim de pensar a relação entre talento e mediocridade. Quando se tem em mente investir na maximização dos talentos, corre-se o risco de fazer do ser humano apenas um meio para se alcançar um fim. 

Como resultado, geram-se falsos indicadores de progresso, visto que o enaltecimento do talento – comumente associado a minorias privilegiadas - tem o dom de camuflar o altar de sacrifício cuja principal oferenda é o investimento na criação de oportunidades para que a sociedade em geral possa beber da chama da potência do talento. Exemplo deste dom de iludir é a Grécia Antiga: um desfile inegável de talentos, alicerçado na escravidão.

O que está em jogo na teoria da justiça de Rawls é uma revisitação – consciente ou não - ao mito de Prometeu, o titã que, ao entregar o fogo aos seres humanos, fez a chama deixar de ser monopólio dos deuses. Se prestarmos bem atenção, Prometeu foi um comunista avant la lettre

O que Prometeu faz é socializar o potencial do talento – cuja imagem alegórica é a chama. E neste processo, o ser humano passa a ser focado como fim do investimento divino e não mais como meio. Não é por acaso que, em uma das versões mitológicas, Prometeu é filho de Têmis, a deusa da justiça, representada por uma mulher vendada que traz nas mãos uma balança em equilíbrio. 

A justiça – e nesse sentido voltamos ao pensamento de Rawls -  é o impulso originário de estimular o talento potencial de todos os seres humanos. Para isso, fecha os olhos às diferenças e igualdades que a cultura fixa, em sua tendência de produzir miragens.

Nas sociedades em que o talento é focado como valor maior, perde-se de vista o ser humano como finalidade do investimento. Entenda-se investimento não só como aplicação de dinheiro, mas como administração do relacionamento entre potencial e realização.  

Além disso, o talentocentrismo inibe uma das principais fontes de geração do talento: a contestação de sua própria identidade. Onde os referenciais de talento são exageradamente claros e precisos, o talento deixa de ser signo de multiplicação do bem-estar e passa a ser signo de divisão e, logo em seguida, de subtração. Vira uma espécie de index, cuja função é unicamente a de barrar a entrada da alteridade em seu recinto privilegiado da mesmidade.

Uma sociedade que leva a sério o cultivo do talento lança sobre ele o que Rawls chama de véu da ignorância. O talento para não se tornar uma esclerose unívoca precisa praticar o exercício de se mediocrizar, de pensar sobre si mesmo enquanto parte de círculos culturais que ultrapassam sua torre de marfim.

Não se trata de um exercício de nivelamento por baixo, mas de reconhecimento e diálogo com os potenciais que os diferentes circuitos culturais possuem de expressar valores. 

O véu da ignorância não é o véu da burrice, como bem conceitua Mauro Torres no blog Viagens e Reflexões (do qual provém a inspiração desta postagem). Está, contrariamente, associado à ideia de que o talento quando fechado em si mesmo deságua na mediocridade. E de que a mediocridade quando tensionada – e para que seja tensionada precisa ter oportunidade de dialogar com os circuitos de talento reconhecido - pode ativar os vulcões de talento que traz adormecidos em si. 

Mediocridade é uma força de descentramento, de hibridismo ou relaxamento das fronteiras. Talento é uma força de centramento, de especialização, de estabelecimento de fronteiras. Ambas estas forças são necessárias para a garantia da justiça e da expressividade na cultura. O perigo é quando mediocridade e talento rendem-se ao extremismo e convertem-se em tirania. Respectivamente a tirania da periferia e a tirania do centro.

Neste sentido, a ignorância é uma pausa que o talento dá a si mesmo para que os desafios que a mediocridade lhe impõe possam remodelar as expectativas do que a sociedade ergue como imagem do talento.  

Esta não é uma fórmula pautada pela igualdade, mas sim pela equidade: a igualdade de oportunidades, tendo-se em vista que existem diferenças entre as pessoas. Leva em conta também a convicção de que talento, mediocridade e ignorância são irmãos gêmeos, que, ora se comportam como univitelinos, ora como trivitelinos. 

Mas, certamente, a ignorância é a irmã do meio, a mediadora entre talento e mediocridade. E, ao assumir seu papel de espelho confuso, de instauradora de complexidade no elo entre mediocridade e talento, a ignorância se torna inteligência. Isto quer dizer que toda inteligência a priori é burra, pois inteligência de fato só há no trabalho de mediação, que a ignorância efetua, entre o talento e a mediocridade. E não há inteligência sem riscos.

  


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