A análise feita, no último dia 8, pelo comentarista do Jornal da Globo, Arnaldo Jabor, a respeito da chacina em Realengo, no Rio de Janeiro, termina com uma frase que gerou polêmica, principalmente entre grupos religiosos: “Deus está ausente!”.
Jabor foi duramente criticado, mas o que me parece é que o comentário dele, ao falar de Deus, não tinha como propósito promover um debate religioso, mas sim abrir caminho para uma verdade com que não estamos preparados para lidar: a de que, historicamente, mostramo-nos incapazes de diferenciar a pergunta "Quem é Deus?" da pergunta "O que Deus representa?". E esta dificuldade atormenta outras interrogações, que não deixam de ser derivadas do questionamento sobre a identidade de Deus, a saber: "Quem é o outro?/O que o outro representa?", e "Quem sou eu?/O que eu represento?"
O choque causado pela afirmativa de Jabor acontece porque temos dificuldade de compreender o comentário dele como uma reflexão sobre as representações acerca de Deus. Arnaldo Jabor se refere ao retorno de um Deus vingativo, semelhante ao que inspirava a matança de feiticeiras na Idade Média, ao que inspira o apedrejamento de mulheres no Irã ou a proliferação de homens-bomba: enfim, uma imagem de um Deus de vingança e terror. Essa imagem de Deus está longe da imagem do Deus de paz, que, nas palavras de Jabor, sacia o desejo por eternidade inscrito no inconsciente e, diria eu, também no consciente coletivo da humanidade.
Não se pretende discutir aqui a existência de Deus, mas não se pode deixar de dizer que é complicado definir quem é Ele. Sabe-se que, biblicamente, ele nem sequer possui nome e se auto-define como “Eu sou aquele que sou”. Mesmo o nome Javé não seria de fato nome, mas um atributo, significando “o ser por excelência”. Já, conforme interpretação de Northrop Frye, Javé, forma aportuguesada do tetragrama YHVH, seria uma referência não diretamente a Deus, mas uma sigla formada a partir do nome das principais tribos do povo hebreu.
O ponto a que se pretende chegar é o de que existe o perigo de confundirmos nossos preconceitos, traumas e perversões com a impressão digital de Deus e de querermos que nossas doutrinas funcionem como carteira de identidade divina. É o perigo de tomarmos o ser e a representação do ser como sendo a mesma coisa.
Deus mesmo percebe isto, segundo o relato bíblico. Na época de Abraão, o povo hebreu ainda oferecia sacrifícios humanos. Deus pede ao patriarca que sacrifique seu filho primogênito, fruto de gravidez milagrosa de Sara (até então estéril e de já avançada idade). Mas, no instante em que ia consumar o sacrifício, o pai de Isaac é impedido por um anjo.
Comumente, interpreta-se este episódio como uma espécie de jogo de Deus para testar a fidelidade de Abraão. Mas outra interpretação possível é a de que Deus quis pôr fim à imagem distorcida que os hebreus faziam dele. Deus não queria ser visto como alguém que esperava sacrifícios, mas sim como alguém que deseja como oferta o coração íntegro e sincero.
É dentro desta premissa que entendemos a predileção divina pela oferta de Abel em detrimento da de Caim, visto, que, por si só, as oferendas de ambos os irmãos tinham igual valor. A oferta de Caim chega a ser descrita como os melhores frutos que a terra tinha pra oferecer.
Mas, à luz dos olhos de Deus, a aparência não pode ser confundida com a essência. E, longe de dizer o que a essência é, a mensagem bíblica o tempo inteiro é uma advertência de que é preciso tomar cuidado com a tentação de confundir as representações com o ser.
Para os cristãos, Jesus é Deus feito homem para habitar entre nós e nos salvar. Mas, não se pode perder de vista que uma das razões para Deus se fazer homem, na perspectiva bíblica, é a de revogar a união inquestionável que até então se fazia entre a representação hebraica de Deus e o ser de Deus. Foi isso que tornou possível se esvaecer a imagem de um Deus distante e vingativo e ganhar força a imagem de um Deus de amor e que está não só perto, mas dentro de nós.
Na Santíssima Trindade, a tentação de sobrepor uma determinada representação de Deus e sua essência perde, de vez, a razão de ser. A entrada do Espírito Santo no flerte enigmático entre ser e representação desconcerta qualquer certeza, visto que o Espírito é descrito como o vento que sopra onde quer e do qual só se ouve o ruído sem saber de onde o vento vem nem para onde vai.
A bíblia trabalha a tensão entre a imagem e o ser de Deus, fazendo desta estratégia literária um sinal de alerta sobre o perigo de confundirmos a aliança com Deus com uma aliança com instintos perversos como a vingança e o terror. O próprio Cristo dirá, quando é indagado sobre porque o Deus do Antigo Testamento agia tão implacavelmente, que Ele agia assim devido à dureza do coração humano.
A nova aliança, também adjetivada de eterna, pauta-se, em sentido contrário, no esforço para se ter um coração capaz de vencer pré-juízos. Largam-se as pedras no chão e acolhem-se as prostitutas, os cobradores de impostos, os doentes e os demais excluídos: todos os que até então eram vítimas da imagem de um Deus carrasco que transmitia sua vingança através das gerações.
O comentário de Jabor é um alerta para a centelha fascista que se esconde na tendência de confundir o ser de Deus com a representação que dele fazemos. Centelha que tem incendiado opiniões de grupos fanáticos cujo passatempo é, por exemplo, explicar desastres naturais, como o ocorrido no Japão, como sendo uma válvula de escape para o exercício de vingança narcísica de Deus contra os que não professam a fé judaico-cristã.
Igualar o ser de Deus com as representações que dele se fazem, num período em que a imagem oscila entre o monoteísmo neo-fascista e o politeísmo fútil-fadigado, realmente conduz a uma ideia de que a felicidade faliu e que Deus nos abandonou.
Mas o apelo da nova aliança continua válido e ardente como brasa de esperança a inquietar a sede pela água viva da mudança por sobre as cinzas do tédio e dos instintos ruins que tentam afogar o dia-a-dia de nossas almas.
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