22 de março de 2011

A ética do fingimento no olhar dos mortos



A ética do fingimento é a única amarra que prende os fazedores de literatura. Aprendi isso hoje com meu professor de Teoria Literária, Anco Márcio Tenório. Mas no hoje de Anco manquejam elegantemente alguns ontens.

É que o presente desfila onipotente, com cabelos tingidos por Garnier Nutrisse. Mas é deselegante com sua precisão de carimbo da realeza e sua tagarelice que emudece os passados e enaltece o futuro, desde que ele não queira abrir mão do cordão umbilical.

Um dos ontens manquejantes, porém elegantes, é o ontem perspicaz de Fernando Pessoa, da dor que se redime fingindo ser ela mesma. E, ao fingir, o fazedor literário amplia tanto os horizontes da dor, que ela acaba conhecendo-se como sendo algo diferente. Redenção? Sim, mas não como a do final feliz que se esconde por trás do "The End" para rir de nossas desventuras. Redenção no sentido de não ter de se render à verdade.

Nada contra a verdade, o caminho e a vida. Mas, o fingir literário nos dá a frágil força de prender a respiração da realidade, destituindo o poder totalizante do real do trono de sua estreiteza.

Fernando Pessoa não é ontem seu idiota! Ele é hoje, é mais vivo do que nunca. Ele é imortal!

Mas tudo que Fernando Pessoa quis e quer é-foi ou foi-é estar morto. E Fernando Pessoa continua querendo. Visto que o querer não é privilégio de seres vivos e reais, mas de quem é capaz de ouvir as desditas humanas, enquanto cavalga, quixotescamente, no fingimento.

Fernando Pessoa deseja a morte, como a morte é para Ferreira Gullar: a chance de ver por através do olhar dos vivos, de ouvir por através de seus ouvidos e sorrir por através de seu riso. Por através como quem morre só para ter a oportunidade de deixar para trás os sepulcros vazios. A morte só é definitiva se não é vista de través.

A ética do fingimento é o vazio niilista ou o tédio prolixo do relativismo. Não concordo! A ética do fingimento - do fazer literário -  é ter um só tipo de compromisso: com o comprometimento. E não com a definição.

O fingir é sério e comprometido como o Arcanjo Uriel, que sorri e vê tudo com bom humor. Mas o bom humor dele é a tenda na qual se abriga para se proteger, visto ser guardião do lugar mais tortuoso: a fronteira entre o céu e o inferno: o lugar mais arriscado: o mausoléu da arvóre do conhecimento do bem e do mal.

O fingir é inautêntico. Desfila no território do sonho. Não busca lastro em cartórios de registro civil.

Fingimento é um edifício cujos pilares são olhares, ouvidos de muitas árvores e muitas gerações. A arquitetura do sonho não cabe na banalidade: no renome.

Os verdadeiros artífices das pirâmides - os escravos - não se contentariam em ter seus espíritos premiados com  um alter-mundus restrito à opulência dos sárcofagos. Os arquitetos do sonho - os anônimos - não querem seus espíritos premiados com o sarcófago da glória. Talvez por isso a fama só alcance boa parte dos artistas depois da morte: o rastro que fica da carreira de quem foge da glória: a ênfase mais perversa da realidade definitiva.

Os poetas são anônimos como Ferreira Gullar, como Fernando Pessoa, como Naayara_b (http://www.flickr.com/photos/forgotten_memories/5519045302/), que deixa seu nome, seu renome se perderem para ser atravessados, misturados, ampliados pelo olhar dos mortos.  Os fingidores honram os codinomes que vestem.

Morrem enquanto definição e ressuscitaram enquanto compromisso. Os profetas continuam vivos, mesmo depois da morte, pois vivem por meio da aliança.

Deus tapa os buracos (as oiças) dos mortos, pois não ouvindo, eles não interferem e não interferindo não podem cruzar o abismo que separa o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas, por opção, Deus toma posse do medo de fechar os poros da poesia.

Foto: Nayara Beatriz - Naayara_b


Alice (Avril Lavigne)

Is this real?
Is this pretend?
I'll take a stand
Until the end.
Eu estou no país das maravilhas
De pé novamente
Isso é real? É fingimento?
Vou me defender até o fim.




Os mortos


os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
       certas sinfonias
                 algum bater de portas,
       ventanias

           Ausentes
           de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
           se de fato
           quando vivos
           acharam a mesma graça
                
De Muitas Vozes (1999)


Conheça mais sobre Ferreira Gullar e sua obra, visitando: Revista Agulha

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