12 de janeiro de 2015

" Je suis Charlie, quando me convém": sobre a relação entre liberdade de expressão e conveniência




Em algum de seus escritos, o filósofo Hegel descreve a liberdade como o polo solitário que a razão tenta alcançar com seus braços. A liberdade nunca é plenamente experimentada e, como lembra Peter Sloterdijk, experimentar a plenitude da liberdade seria desfilar iludido, preso na gaiola de vento da conveniência redentora.

A liberdade de expressão tem se mostrado liberdade blindada por certa dose da onipotência, seja ela a onipotência dos ominipotentes proprietários do status quo ou a onipotência dos impotentes. Sim, porque as minorias têm podido usufruir de cotas de onipotência ancoradas em seu grito de lamento. 

E, talvez, o medo (o jovem mais velho sobre a face da terra) da onipotência impotente, esta invenção do século XXI, seja o que vem causando reações que fazem a contemporaneidade abrir brechas no tempo-espaço por onde escorrem repetições trágicas e farsantes de impulsos genocidas que os iluministas sonharam ter destruído pela força da razão. Mas, a guerra provou que o ideal das luzes podia ser tingido de sangue e que o Humanismo, por mais boas intenções que tivesse, era capaz de se converter em seu extremo oposto.

Diferentemente da Bíblia, a história tem provado que o Apocalipse não é um fim absoluto, mas sim um fenômeno cíclico e os terrores apocalípticos não se anunciam por meio de trombetas ou do romper de selos: chegam silenciosamente.

Charlie tem direito a dizer tudo o que deseja, mas tantos eu-te-amos têm permanecido calados com receio de ser condenados a um fuzilamento cujo paredão é a solidão existencial e, as balas: antigas promessas corroídas pelo preconceito.

Poderá a manchete da Charlie ser “Shopping premia o melhor selfie de Rolezinho em 2014”? Ou “Heterossexuais e Homossexuais podem se paquerar livremente sem ser postos em quarentena”? Ou, talvez, “Minha Casa Minha Vida oferece vagas no Condomínio Pequena Estela”?

A Liberdade tem o dom de mobilizar a razão, mas também é empurrada para o exílio pelos ventos da desrazão. E nossa época ainda não percebeu que a desrazão é como um sistema de vasos comunicantes no qual a violência em grande escala está diretamente ligada a violência de “pequenos gestos”. 

O lema “Eu sou Charlie”  aponta para a necessidade de observarmos quando a liberdade de expressão corre o risco de se igualar á pura e simples conveniência, um espasmo que, ao sabor das ondas do mar morto da hipocrisia, crucifica o Islã e silencia o Terrorismo cotidiano que atenta contra os direitos fundamentais de sobreviver, ter acesso ao conhecimento e andar de mãos dadas em público, independentemente de cor, credo ou orientação sexual. 

Fórmula da conveniência: "Defendo até o fim o direito de dizeres o que quiseres, desde que eu concorde"

Onde buscará refúgio nosso tempo quando se libertar do jugo ancestral da onipotência: seja ela expressa por meio da dominação dos grandes ou do poderio dos pequenos? Fico devendo a Bob Dylan a resposta à sua pergunta sobre quantas bombas precisam explodir ainda antes que se fechem as cortinas do absurdo teatro da onipotência.


PS.: O Ebola não precisa se espalhar porque as pessoas já têm se deixado tornar reféns da doença ao transformar tudo que foge do seu horizonte de aceitabilidade em vírus a ser combatido pelo remédio da intolerância.

افتقد حبي ، G. أندريه !

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