10 de agosto de 2010

A polêmica entre plágio e intertextualidade no caso de amor entre Fagner e Cecília Meireles

Cecília Meireles 

Se me perguntassem o que eu entendo por plágio, responderia por meio de uma metáfora fundada numa situação concreta. Refiro-me a algo ocorrido quando estava no início da faculdade de Jornalismo.

Ao cursar a disciplina de Introdução à Fotografia, amigos de turma e eu fizemos um ensaio, fotografando o Recife Antigo. Na época, o processo de revelação química ainda sobrevivia, vindo a ser logo substituído pela digitalização.

No laboratório de revelação, havia varais nos quais pendurávamos as fotos recém-nascidas, à espera de secagem.

Ana Carolina, até hoje das melhores amigas que é possível ter, alertou-me que um sem-vergonha que estudava conosco rondava o varal, pensando em voz alta: “Não fiz o ensaio que a professora mandou. Vou pegar uma dessas fotos que estão no varal e apresentar como sendo de minha autoria”.

Esse rapaz não tinha percebido que, em meio àquela quase escuridão total, Ana ouviu o que ele dissera. Sem pestanejar, a moça denunciou o caso à professora. Mas, as falhas da justiça brasileira revelam-se não só nas altas esferas do Judiciário. A professora puniu o delito presenteando o “malandro” com a nota 4,5. Enquanto isso, eu tirei 9,5.

Lamúrias à parte, este caso ilustra bem o que entendo por plágio. Plágio é catar as ideias de alguém, penduradas no varal da existência: ideias estas frutos de inspiração, privações, sacrifício, isto é, da criatividade. Nesse processo, de forma torpe, “apagam-se” as marcas de autoria, apropriando-se, indevidamente, do mérito criativo de outras pessoas.

O Caso Cecília Meireles

Este preâmbulo, versando sobre o plágio, é para lembrar uma polêmica que terminou dez anos atrás e que envolveu a dificuldade de se reconhecer a fronteira entre o plágio e a intertextualidade.

No site do cantor Raimundo Fagner (http://www.raimundofagner.com.br/cecilia_meireles.htm), são descritos todos os passos do chamado “Caso Cecília Meireles”, referente ao processo judicial ao qual respondeu o cantor e sua gravadora, entre fins de 1970 e o ano 2000, pela acusação de plagiar a poetisa autora de Romanceiro da Inconfidência.

Na época do processo, não havia a tendência atual de só dar início a ações judiciais após falharem as tentativas de acordo entre as partes. Acredito que, no contexto atual, o processo judicial referente ao “Caso Cecília Meireles” teria sido desnecessário.

Com base na noção de intertextualidade, o inelutável diálogo que qualquer texto faz com outros, é claramente perceptível que a música Canteiros, interpretada por Raimundo Fagner, não é um plágio.

Na época de início do Caso Cecília (1977), a noção de intertextualidade, formulada por Julia Kristeva, era uma criança pequena, de apenas nove anos. Grande parte dos conceitos das ciências humanas leva décadas para ser incorporado no repertório dos círculos de discussão acadêmica.

Para influenciar a vida prática, então, o tempo é maior ainda. Basta pensarmos que, até hoje, as noções de polifonia e dialogismo – formuladas por Bakhtin e inspiradoras de Julia Kristeva – geram forte polêmica em áreas diversas como Linguística, Filosofia, Psicologia e Comunicação Social.

No Brasil, a noção de intertextualidade só começa a popularizar-se por volta de 2000, retomada por pensadores como a linguista Ingedore Koch.

Coincidente ou providencialmente, o ano em que, por meio de um acordo com as filhas da poetisa, tem fim o Caso Cecília. Nesse ano, Fagner regrava Canteiros numa gravação ao vivo.

Na música Canteiros, Fagner não comete plágio. Ele não roubou as ideias que Cecília Meireles pendurou no varal da existência e não trabalhou no sentido de ocultar a autoria dos versos da poetisa. Ao contrário, Fagner realçou a presença de Cecília ao emprestar-lhe tocante melodia.
O que Fagner fez é um caso de intertextualidade implícita, mais popularmente conhecida como paráfrase. Em contraste com a intertextualidade explícita, cujo maior exemplo é a citação, a implícita está presente o tempo todo nas paródias, nas versões e traduções: é encontrada em produções culturais que vão de Ariano Suassuna a Stephanie Crossfox.

Além disso, o próprio Fagner reconhecia, ao fazer shows, que Cecília Meireles é co-autora de Canteiros. Atualmente, creio eu, Fagner e sua gravadora, responderiam por negligência, por não citar Cecília Meireles no encarte do disco, e não por plágio.

Não se pode esquecer que em Canteiros, Fagner homenageia seu amigo e companheiro de composições (como a linda canção Mucuripe), Belchior, como também Tom Jobim.

Uma marca do plágio é roubar do plagiado não o texto em si, mas sim a possibilidade de que dele seja reconhecida a autoria. Coisa que acontece, por exemplo, com determinados “autores” de novelas brasileiras que fazem fama em cima da corveia anônima de escritos depositados na Biblioteca Nacional.

Na arte de Fagner, assim como na Benjamin e de Joyce, a noção de intertextualidade cometeu o pecado de ser vanguarda. Mas, sem este tipo de pecado, a arte ficaria presa no paraíso da mediocridade.


Eis, a título de curiosidade e comparação com a letra cantada por Raimundo Fagner, o poema ''Marcha'', original de Cecília Meireles (Fonte: http://www.raimundofagner.com.br/cecilia_meireles.htm):

''Quando penso no teu rosto, fecho os olhos de saudade
Tenho visto muita coisa, menos a felicidade
Soltam-se meus dedos tristes
dos sonhos claros que invento
Nem aquilo que imagino
já me dá contentamento


Gosto da minha palavra pelo sabor que me deste
Mesmo quando é linda, amarga
Como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo que tenho
entre o sol e o vento.
Meu vestido, minha música,
meu sonho, meu alimento.''


Música de Belchior, citada em Canteiros:


NA HORA DO ALMOÇO

No centro da sala,
diante da mesa,
no fundo do prato,
comida e tristeza.
A gente se olha,
se toca e se cala
E se desentende
no instante em que fala.

Cada um guarda mais o seu segredo,
sua mão fechada
sua boca aberta
seu peito deserto,
sua mão parada,
lacrada,
selada,
molhada de medo.

Pai na cabeceira: É hora do almoço.
Minha mãe me chama: É hora do almoço.
Minha irmã mais nova, negra cabeleira...
Minha avó me chama: É hora do almoço.

... E eu inda sou bem moço
pra tanta tristeza.
Deixemos de coisas,
cuidemos da vida,
senão chega a morte
ou coisa parecida,
e nos arrasta moço
sem ter visto a vida
ou coisa parecida aparecida
(essa é a parte citada por Fagner).




Canteiros
Fagner, baseado no poema "Marcha" de Cecília Meirelles
Músicas incidentais :
Na hora do almoço (Belchior), Águas de Março (Antonio C. Jobim)
dos discos "Manera Frufru Manera" e "Ao Vivo - Duplo" (Fonte: http://www.fagner.com.br/letras/L_canteiros.html)


Quando penso em você
Fecho os olhos de saudade
Tenho tido muita coisa
Menos a felicidade

Correm os meus dedos longos
Em versos tristes que invento
Nem aquilo a que me entrego
Já me dá contentamento

Pode ser até manhã
Cedo, claro, feito o dia
Mas nada do que me dizem me faz sentir alegria

Eu só queria ter do mato
Um gosto de framboesa
Pra correr entre os canteiros
E esconder minha tristeza
E eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza ...
Deixemos de coisa, cuidemos da vida
Senão chega a morte
Ou coisa parecida
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um toco sozinho ...
São as águas de março fechando o verão
É promessa de vida em nosso coração


5 comentários:

  1. Bom dia! Cara estou apaixonado pelo seu blog.
    Irei defender um projeto na faculdade e é justamente sobre a polêmica do plágio, no caso do Fagner e Cecília Meireles. depois de procurar muito encontrei aqui uma semelhança entre minha resposta e o que quero defender. A intertextualidade que a música traz! Porém, não pude deixar de passar pelos outros textos seus e ... realmente são muito bons! Parabéns!

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  2. Muito obrigado pelas palavras, Diego. Espero que teu trabalho renda muitos frutos. O plágio é realmente um tema instigante e polêmico. E, por isso mesmo, oferece um rico horizonte de análise. Grande abraço!

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  3. Plágios a parte, quero falar da poesia que nos embala a mistura de textos, e que resultou numa canção lindíssima. Parabéns pela imparcialidade e pelo respeito aos devidos autores e/ou compositores!! Bela página....

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  4. Muito obrigado pelas palavras, Dendeca. Grande abraço e tudo de bom!

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  5. Intertextualidade presente também em Fanatismo, em que ele mostra todo seu afeto pela poetisa...

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