Fonte: Revista Public First Class |
Um dicionário me jurou de pés juntos que a
expressão roedeira tinha origem no nome popular de uma epizootia (enfermidade
contagiosa que ataca um número grande de animais ao mesmo tempo) do gado
bovino, que determina a queda dos chifres. Roedeira é o mal-dos-chifres. Mas, ao
ser incorporada, no repertório nordestino, com o significado de sofrer por
amor, essa palavra não acompanhou seu sentido veterinário, pois não só aqueles
que foram vítimas de uma traição conjugal (levaram chifre) têm direito a
padecer de roedeira.
No universo web, já é possível encontrar teorias sobre a
roedeira, dizendo, inclusive, quem deve roer, como e quando, além de ser
prescrita medicação para a cura deste mal. Se bem que, de acordo com as teorias
existentes, existe, assim como acontece com o colesterol, roedeira da boa e da
ruim.
Minha parcela de contribuição para o avanço dos estudos
científicos sobre a roedeira: roer é um
momento de suspensão dos juízos ou certezas, algo comparável ao que o filósofo Edmund
Husserl chama de epoché, termo que vem do grego e significa “colocar entre
parênteses”.
Quem está roendo não está preocupado com dogmas, convenções
e verdades institucionalizadas, a exemplo de noções de bom-gosto, etiqueta,
bom-senso e razoabilidade. Mas, entenda-se que suspensão dos juízos não
significa um mergulho no absurdo, mas sim um aval temporário para que o
convencional e anti-convencional, o razoável e o desarrazoado, se misturem. Creio
que a roedeira é ferida pelo sincretismo.
Porém, é EVIDENTE que
a roedeira não abre caminho para a violência ou mesquinharia, visto
que estes estão associados à premeditação. Já roer é algo ferido pelo
laisse-fare/laisse passer, sem, contudo, dar à mínima para as leis de mercado.
Daí, a pessoa que está roendo abrir mão de se preocupar com a complexidade
e a proporção estéticas. Quem está roendo também não vai se preocupar se o
cobertor que afaga suas dores é uma música de Fábio Jr ou de Chopin; ou se é um
livro de Paulo Coelho ou de Machado de Assis.
A roedeira é um sarau onde os artistas se despem das
convenções e se permitem vasculhar a região silenciosa onde seus sentimentos se
tocam. Numa época em que a expressão cultural vem sendo encarada como um
espécie de visto que permite ou não que ingressemos em terras estrangeiras –
sejam estas terras países ou as próprias pessoas – a roedeira é um tipo de
território neutro, algo como costumava ser a Suiça, quando a Europa estava em
guerra.
No blog Qualquer Coisa de Triste, achei uma definição legal
para o termo roedeira. Roedeira é o instante em que a suspeita sobre a
capacidade de amar abre caminho para amar o amor. E, durante essa espécie de
transe, uma doce anarquia coloca entre parênteses os poderes executivo, legislativo
e judiciário.
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