Qualquer defeito que eu inventasse para o filme da
Mulher-Maravilha não causaria um arranhão em seus efeitos.
Um filme superior aos mais recentes produzidos pela Marvel
Comics, rompendo com a aparente sina da DC Comics de gerar adaptações
cinematográficas com roteiro enfadonho, com exceção da trilogia encabeçada por
Batman, o Cavaleiro das Trevas, e da leitura feita para o Homem-Morcego por Tim
Burton.
A atriz Gal Gadot foi esculpida para o papel, conseguindo
equiparar-se a Lynda Carter (que imortalizou a Mulher-Maravilha no seriado de TV do final da década de 1970) no que diz respeito ao potencial de traduzir o
arquétipo. O quê de latinidade da atriz israelense coopera para associar à
personagem a fisionomia dos países periféricos.
A própria Lynda Carter, apesar de criticar os tons fechados da nova versão do uniforme da Mulher-Maravilha, responde às pessoas que criticam a escolha de Gal Gadot, por não ter características arianas: "E quem disse que ela [a Mulher-Maravilha] é branca? Eu sou meio-mexicana. Gal
Gadot é israelita. A personagem é uma princesa amazona, não americana. Eles
estão tentando colocá-la numa caixa, e ela não está em uma caixa".
A construção da Mulher-Maravilha equilibra os apelos de dois
modelos de super-herói: um onde se combinam a resiliência e a grandiosidade (física
e ética) de um épico revisitado pelo idealismo romântico; o outro apelo é o da
humanização do super-herói, expondo-se suas inseguranças, vaidade e egoísmo.
Se bem que este segundo apelo aparece em doses homeopáticas
em comparação com a leitura que vem sendo dada à personagem, nos quadrinhos,
onde a doçura e ingenuidade tradicionais da Mulher-Maravilha cedem espaço a uma
brutalidade e calculismo à moda de Batman.
Na minha opinião, a origem da personagem poderia ter
permanecido como na leitura dada após a saga Crise nas Infinitas Terras, onde
Diana é encarnação de uma das almas de crianças frutos de violência sexual
contra mulheres.
Também acho que deveria ter sido preservada a versão dos
quadrinhos para a explicação dos poderes da personagem.
O desfecho concebido, nas HQs, por Marv Wolfman e George
Perez para o duelo entre a Mulher-Maravilha e o deus da guerra, Ares, é mais
interessante por retirar o deus da zona de conforto da divindade, indo buscar
nele sua porção demasiada humana. Porém, a solução da película também tem qualidade.
O choque/encantamento cultural vivenciado por Diana ao
entrar em contato com o “mundo dos homens” é instigante. E a inserção da
personagem no contexto da II Guerra Mundial ultrapassou as expectativas do meu
sonho de criança de ver as HQs em “carne e osso”.
Gal Gadot e Lynda Carter (da esquerda para a direita)
Fonte da imagem: Cinema News
Os mais exigentes e que foram cativados pelo realismo cru do quadrinho Mulher-Maravilha: Espírito da Verdade, podem achar o filme ingênuo. Contudo, tanto a ingenuidade quanto o realismo têm maneiras peculiares de caminhar na corda bamba entre encantamento e desilusão.
O melhor do filme é sermos cúmplices de como a
Mulher-Maravilha se esforça para entender a tragicomédia humana, deparando-se
com os dilemas do livre-arbítrio e com a ligeira e frequente oscilação entre
altruísmo e egoísmo extremos no caráter humano.
Donald Trump e jair Bolsonaro se remexeriam nos seus
túmulos/poltronas assistindo ao filme, que já teve o aval de boa parte da ala
feminista.
Os cenários e efeitos especiais, super-fantásticos amigos, tornam-se menores diante do efeito-humanidade da história.