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Cena do filme Hunger Games |
A personagem principal da continuação de Jogos Vorazes (procurem,
por favor, o nome dela no Google e me ajudem a evitar a fadiga) tem um de seus
pés calçados por uma interrogação e o outro por uma exclamação.
Da jovem é cobrado um tipo de perfeição que sintetize aspirações
coletivas por amor e guerra. Até aí, nada além da manjada fusão entre Coliseu
romano, Big Brother e No Limite. Mas, os Jogos Vorazes acrescentam a sua lista
de demandas a serem satisfeitas uma aspiração humana demasiado contemporânea,
que é a aspiração por estar em dúvida sobre estar ou não diante do fingimento.
Tradicionalmente, o fingimento é listado como pecado, coisa
vil, digna de tornar-se arabesco a enfeitar quaisquer dos círculos do Inferno
de Dante.
Atualmente, não o fingimento, mas o desafio de definir
a fronteira entre o fingimento e a verdade tem exercido fascínio na audiência. Não
é de se estranhar, tendo em vista que tanto o fingimento quanto a verdade têm
sido encarados como provas de resistência. Num contexto de relativização dos
valores, a suspeita está na ordem do dia, e anseia por encontrar alívio, ao cair nos braços de algum herói (?)
que tope a empreitada de empunhar a quixotesca (totalitarista?) espada da verdade
absoluta ou o risco de escalar a montanha fluida dos relativismos.
Em todo caso, a plateia aguarda ansiosa pela decisão do
gladiador/réu/cordeiro sacrificial : “Fingir ou não fingir? Eis a questão!”.
Mas, a releitura deste dilema shakespeareano acaba se complexificando, pois,
espremida entre as pressões sociais e as da subjetividade (?), a pergunta pode
virar algo do tipo: “Fingir que finjo ou Não fingir que finjo?” ou, trazer como
bônus natalino da Black Friday uma terceira opção: “Não fingir e fingir que finjo”.
Estes desdobramentos do dilema de Hamlet afligem a
personagem principal de Jogos Vorazes. Para o seu amado Gale Hawthorne e para o
público em geral, ela jura que o romance que vive com Peeta Mellark, no Reality Show
do qual é escrava, é fingimento. Já para Mellark, ela finge que não é amor o que
sente por ele. Para si mesma, a “garota em chamas” finge que finge que
finge..., lembrando uma das mulheres que Chico Buarque finge ser numa de suas
canções.
Dessa forma, a principal armadilha que ameaça a personagem
principal da película é a encruzilhada de fingires na qual as circunstâncias a
lançam, obrigando-a a fingir que são fingimento até mesmo suas mais caras
verdades.
A personagem principal de Jogos Vorazes, vítima da nefasta
combinação entre tecnologia, guerra e entretenimento midiático, acaba
encontrando no fingir (em diferentes medidas e combinações com a verdade) uma
estratégia de sobrevivência. Algo que ocorre com os contemporâneos escravos da
fama ou, em outras palavras, as celebridades.
Pensemos no caso Daniela Mercury, que teve a revelação de
sua homossexualidade acusada de estratégia para alavancar sua carreira. Supondo-se
que esta acusação corresponda à verdade (?), ela se veria pressionada a fingir
que seu gesto foi movido puramente por amor. Isso diante do imaginário
católico-medieval de que o interesse financeiro é inversamente proporcional ao
amor, o que não é de todo verdade, pois não raro grandes empreendimentos,
envolvendo interesses econômicos, sustentam-se amparados pelo afeto de relações
entre familiares e relações entre amigos.
Pergunto-me se para não ver sua luta
política (em combate à homofobia) e íntima (para viver uma relação amorosa não
convencional), a cantora não precisou fingir que o mundo dos negócios era uma parcela
ausente da questão. Nesta perspectiva, ela não teria mentido, mas fingido,
levando-se em consideração que os interesses pecuniários (que, nós comum e
erroneamente tratamos como sinônimo de “interesses em geral”) são fato
incontornável de nossas trajetórias de vida, mais ainda quando se é uma “celebridade”.
Problemática semelhante envolve as atitudes do Papa
Francisco, cujas ações têm sido consideradas, por parte da crítica, um tipo de “marketing
franciscano”, estratégia para promover uma Igreja Católica ameaçada de
declínio.
O “ser como São Francisco” do Papa Francisco contém fingimento,
pois, sem fingir, nenhum ideal resiste ao se olhar no espelho e se ver cercado
pelas três "belas" e terríficas sereias: guerra, mídia e técnica.
Como observa o teórico, Harold Bloom, Ulisses era um herói
e, como tal, idealista, mas seu idealismo era ferido pela astúcia e, não raro,
por um quê de trapaça. Ulisses enganou as sereias, fingindo que o canto delas
não lhe podia alcançar, fingiu também que seu nome era “Ninguém” para não ser
destruído por Polifemo.
De alguma forma os idealistas, para escaparem da fúria do olhar
unidimensional dos valores consagrados pelo status quo, precisam fingir, para
ter chance de atuar, mudando minimamente as coisas. Assim, o Papa Francisco,
provavelmente, terá de fingir que seu ideal franciscano tem mais força do que
nunca, mesmo sabendo que este ideal não conseguirá (ou não quererá ou não poderá, sob o risco de colocar em xeque a sobrevivência do Papa) que o
dinheiro dos cofres do Vaticano seja, como esperam os críticos do bispo de Roma, integralmente distribuído aos pobres (o
que não seria garantia nenhuma de que a exploração do ser humano deixaria de
existir).
O subtexto de Jogos Vorazes mostra que aquilo chamado pela crítica,
em tom pejorativo, de fingimento ou marketing, mesmo estando, no mais das
vezes, ligado à hipocrisia, também
reflete um esforço do idealismo para desenhar um roteiro de sobrevivência, uma
maneira de encontrar espaço para atuar eficazmente em meio ao mar de
descrença que tenta se instalar no momento atual e à ameaça de fantasmas do
passado como os totalitarismos.