Cartaz do filme Corra! (Get Out!) |
Quem disse que filme de terror não pode trazer crítica social em seu DNA?
A cada cena de Get
Out! (que, no Brasil, ganhou o título de Corra!), o que mais me assustava eram as correlações que fiz com um
depoimento da atriz Thaís Araújo sobre a relação entre racismo e tolerância.
O filme de Jordan Peele tem feito sucesso pelo mundo como
thriller de terror sem apelar para o sobrenatural, de suspense parapsicológico
e mistério.
Mas, não considero que o gênero do filme seja nenhum dos
mencionados no parágrafo anterior. O terror, o mistério e o suspense são, na
verdade, metáforas do verdadeiro tema do filme: o mito da tolerância.
Só pra não deixar o leitor voando, lá vai uma sinopse:
Chris, muito bem interpretado por Daniel Kaluuya (de Black Mirror) resolve
passar o fim de semana na casa dos pais de sua namorada Rose, papel vivido pela
atriz Allison Williams.
Ao chegar lá, depara-se com uma família a princípio
receptiva. Porém, o apurado olhar fotográfico de Chris começa a detectar estranhas
coincidências. Os poucos negros da região apresentem sinais sorumbáticos que
tentam conviver com sinais artificiais de tranquilidade e alegria.
O riso dos negros da localidade aproxima-se do que, no
jargão médico, é chamado de facies hipocratica,
caracterizada por olhos fundos, parados e inexpressivos presentes em casos nos
quais a pessoa enfrenta uma grave doença.
Chris começa, então, a perceber que aquilo não se trata de
mera casualidade e que ele próprio pode se tornar vítima.
O título original (Get out!) é uma ironia. Isso porque o
desejo de uma elite branca de que a negritude seja banida é ironicamente associado
ao desejo de se tornar o negro: parcialmente.
Retomando a questão do mito da tolerância, que atua como
paisagem crítica da película, o modo como este mito é apresentado é que é a
sacada da história.
Os negros não são intolerados. Ao contrário são, de uma
forma deturpada e asquerosa, tolerados. O lado falso da tolerância é expresso
pelas técnicas empregadas pelos brancos para estreitar o espaço social e
psíquico em que os negros podem existir.
O existir tolerado é aquele em que o ser humano subjugado só
pode se mover e sentir dentro de limites estreitos, de uma jaula que, no filme,
assume a pior forma de prisão, aquela que o pensador Peter Sloterdijc denomina “gaiola
de vento”, uma alusão às prisões caiadas de ilusória liberdade.
O que o filme Corra!
faz é dar tons hiperbólicos ao que acontece na sociedade atual, onde o fetiche
da tolerância esconde um jogo sádico. Assim, os negros, os gays, as mulheres, e
outros grupos atingidos pela discriminação, sentem-se coagidos a entrar no jogo
da pseudo-aceitação.
O gay/negro/mulher é tolerado, desde que respeite os limites
de existência subliminarmente impostos pelos donos da situação.
E assim espera-se dos discriminados que, no mínimo, sorriam
e sintam-se gratos enquanto ouvem os discriminadores assumirem palavras e
gestos onde a discriminação faz um contorno
no cabo das tormentas para encontrar um outro modo de chegar às Índias,
isto é, ao coração da pessoa discriminada.
Essa expressão perversa do mito da tolerância atua como se discriminadores
(ou a parcela discriminadora de cada um de nós) erguessem manequins invisíveis
e os incendiassem com tochas de insulto e violência, dizendo à pessoa que se
quer discriminar: “Estou insultando um ser invisível, que, por mera
coincidência, poderia ser você, mas não é... Portanto, alegre-se!”
Em Corra!, o
preconceito não existe. Porque um grupo de sádicos desenvolveu técnicas para
estreitar o âmbito em que os negros podem existir e envernizou esta gaiola de
ventos com água oriunda de lavagem cerebral e de lágrimas ao avesso,
disfarçadas de sorriso e paz cemiterial.
Quando o terror, o suspense e o mistério morrem é que o
filme se torna mais aterrorizante e tenso.
Filme incrível e com grandes atuações de Betty Gabriel, Catherine Keener, Keith Stanfield e Bradley
Whitford.