30 de abril de 2013

Poema dos segundos últimos




Se só me restam dez segundos
Como compor um Eu te amo para Alguém?
Não seria um Eu te amo para convencer
Pois o único gatilho que desejaria apertar
Seria o de teus dedos entrelaçados aos meus,
Desarmando-me por completo
E isso já acontece todas as manhãs
Quando tua imagem que mora em mim,
Faz-me chover vontade de ser bom e honesto e voar o risco
De aterrissar no coração alheio
E até de correr para a Venezuela e salvar o terremoto que me entrega seu chão

Em meio segundo,
Descobri que Deus às vezes me tem ignorado
Para que eu sinta saudade dele 
O Nobre Alguém está longe de ser um deus: basta-lhe ser anjo
E Deus está perto dele
Para que a saudade ocupe dez eternidades dos poucos segundos que me restam

Esse Eu te amo não seria para te conquistar
Porque não te quero como quem busca drenar uma colônia até a pós-última gota
Ao contrário, meu afago é que deseja ser colonizado por tuas bochechas lindas
Meus abraços anseiam por se tornar escravos da liberdade de te reencontrar
E o selo que teu lábio me reserva (repito tanto a palavra lábio, na falta de outra que descreva com justiça este sonho sob o qual se abriga teu sorriso e sobre o qual paira tua timidez trajada de enjoada fofura)
O selo que teu beijo me reserva dá razão de ser à esperança que bate no peito
De um pombo-correio que, ainda não sabe: seu próprio voo é a correspondência,
E que o Alguém a quem esse voo se destina
Torna qualquer endereço uma pálida imitação de seu Nobre olhar

Só restam dez segundos
Empresto, então, ao ponteiro grande a saudade
E, ao pequeno, a raiz infinitesimal do microtempo
Para que seja possível reescrever o relógio
E crer e ver que em tua visagem a eternidade é um elogio
Sem hora pra partir

Contagem regressiva:

Volta,
(seguem-se Três pulsares cardíacos)
Fica
(seguem-se mais três constelações cardíacas)
Olha-me
(seguem-se mais duas luas cardíacas)
Sonha
Segue-se uma parada cardíaca...

Epílogo

Entro no ônibus e me sinto a teu lado
E te conto que, algumas estrofes atrás, roubei emprestado, de última hora, um verso
Para dizer do bem que quero ao anjo que chega saindo,
E, sem me olhar, transforma-me num visto para a nação dos expatriados
Para a nação dos sem noção, onde o sol da suavidade sem nexo
Jorra dos confins do meu plexo
 

28 de abril de 2013

Ana Karenina canta Tom Jobim na pele de Wanessa da Mata




O filme Anna Karenina, de Joe Wright, realizado quase que exclusivamente, no interior de um teatro, consegue competentemente gerar a incômoda sensação de que a vida é uma atriz coadjuvante que, em sua mudez, oferece o contraponto necessário para que a convenção social ganhe o Oscar de atriz principal.

Mas, Wright certamente talvez não saiba que enquanto Anna Karenina veste Keira Knightley, no cinema, nos palcos escolheu como figurino a atuação de Wanessa da Mata, interpretando a obra de Tom Jobim.

Contudo, a Anna Karenina encarnada por Wanessa da Mata está despida da cobrança da moralidade instituída por sua época. Poderia, depois de um divórcio amigável ou de propor a seus dois amores um relacionamento aberto, tranquilamente caminhar pela orla de Ipanema, onde o sol parece drenar o poder judiciário que tende a fazer morada no olhar alheio. 

Anna Karenina queria ter feito da bossa nova a trilha sonora de sua vida, mas como ela conseguiria abrir mão da tragédia, que ficou de fora da poesia construída a bordo do barquinho que deslizava no macio azul do mar?

Anna Karenina busca a impraticável combinação de um espírito nu que dança ao som do silêncio com um corpo que, vestido impecavelmente, dança ao som do louvor e da aceitação dos outros. Desse mal não sofre a Anna Karenina que, dirigida por Tom Jobim, habita Wanessa da Mata: esta escolheu simplesmente cantar O que tinha de ser.

Anna Karenina... Se ela tivesse nascido na Bahia e tivesse sido vestida pela pena de Jorge Amado, teria sido Dona Flor. Jorge Amado, em sua escrita aparentemente resumida à despretensão e ao bom humor, captou como funciona a moralidade quando utilizada como mecanismo de controle social. Agir de modo a satisfazer as exigências morais dos outros é guardar os desejos mais profundos e ardentes para os fantasmas. Só amando fantasmas é que conseguimos caber nas molduras da moral estabelecida.

Foi esse o “erro” de Anna Karenina. Ela não conseguiu guardar sua paixão para um homem invisível. Ambiciosa, quis amar dois homens ao mesmo tempo, mesmo que tenha acreditado que seu amante era seu único e verdadeiro amor. Mas, ambição maior foi a de querer, ao mesmo tempo, estar presente como mãe, amar como mulher e ser perdoada, como uma criança.

Karenina não aceitou aguardar ser esquecida, enquanto conversava com a tolerância hipócrita na ante-sala da invisibilidade. Mas, não! Esse texto não é uma saída em defesa de Kariênina ou um insulto à moralidade, visto que a defesa e o insulto parecem sem efeito quando a sociedade faz dos veredictos o ponto de partida e o ponto de chegada, abrindo mão do próprio julgamento.

26 de abril de 2013

Un coup de foudre




                    Coup De Foudre -



Un coup de foudre
Cerevenise Stür


Antes de ontem, 

Quando entraste, fui golpeado por um trovão (un coup de foudre que me transformou em odre novo)
Silencioso, ele estrondou em mim em todos os idiomas da inefabilidade
Fez minha felicidade se contentar em tímida ser
E, mesmo de cabeça baixa, intimei o chacra coronariano a,do topo ao sopé, te sondar
Não tenho culpa que ele tenha achado lindos os teus eus visíveis, os invisíveis
E os que dão ao meu olhar a chance de ser toque, olfato, escuta e sentido
Tua presença ali era sonho
E me contava que o sonho é um agradecimento antecipado a Deus
Por um milagre que não precisará existir para que a vida seja considerada bênção
E perguntei-me, acordado em Francês,
Como desaprenderia a beijar
Para poder beijar pela primeira vez Alguém pelo qual esperava a pressa e
Ansiava a paciência
Cada vez que te vejo preciso um terceiro coração no peito plantar: dois não são suficientes
Um coração para as funções normais como o bater, o apanhar e a poesia
Um segundo para se entregar e, assim, desistir de se render  
O terceiro é o estepe, porque vai que um dos outros dois decida pipocar (E pensar
que quando chego e vejo que teu carro está lá, minha alegria respira aliviada
é que o orvalho acaricia meu rosto, antes mesmo de o dia amanhecer,
diante dos indícios de tua existência)

O check out da Face: o modelo que foi proibido de ser bonito e a Miss Entrelugar




عيضة المنهالي حلم طيف


Um modelo dos Emirados Árabes foi proibido de entrar na Arábia Saudita por ser bonito.
Deus, aprendi que não posso ser feio!
Agora, é-me ensinado que não posso ser bonito. E agora?
Em que lugar neste latifúndio espectral de semitons, entre a beleza e a feiúra,
Vou estacionar minha cova rasa?
Responde-me, João Cabral!
Responde-me onde guardar a beleza ou a feiura até sair o resultado
Do concurso de Miss Sem Rosto: Qual o sem rosto mais bonito do universo?
Dizem que as favoritas são as misses Translugar e Entrelugar,
Mas, a vencedora será a candidata perdida: a Miss Não-lugar
O não rosto mais inigualável do qual já se ouviu falar...

O que vai ser das pedras preciosas? Elas não conseguem mais um lugarzinho para descansar
Seus ossos velhos e cansados:
Foi-se o tempo em que as redomas eram garantia de que a joia seria cultuada
Outra fonte de valor seria o roubo ou a negociata: passando de mão em mão,
A joia se sentia valorizada
E esquecia-se das marcas das impressões digitais prostituídas que apalpavam seu corpo

Como é ser nem bom nem mal, nem direita nem esquerda, nem quente nem frio, nem morno nem vomitado?
Como é marchar na corda semi-bamba do equilíbrio incerto?
Como é não sentir saudade do tempo em que as fronteiras eram claras e precisas, mas sentir crise de abstinência pela falta do GPS, do check in do Face, do check out da face e de outros detectores de nossa presença/ausência? Sim, porque não é só nossa presença que tem sido monitorada, mas também nossa ausência. Estamos dormindo, mas os fantasmas de nós mesmos não dormem, escravizados pela liberdade das programações de postagem nas redes sociais.
Sim, talvez aí esteja a resposta, o grande troféu por que até hoje as misses esperam. Programemo-nos para ser bonitos e feios em horários diferentes da Time Line. E rezemos para que sejamos vistos, curtidos, compartilhados, viralizados... E quem sabe assim voltemos a ser os deuses que nunca fomos...

Preciso fazer um curso de geografia
Ou, certamente talvez, de topografia
Para entender que lugar as pessoas desejam umas às outras no mapa que esboça esse mundo
Onde está o lugar ao sol se quero viver em Londres,
Ou, melhor dizendo, se vivo sob o mesmo teto que o efeito estufa?
Ah, mas lembrei, que o efeito estufa é mentira
Como me contou um geógrafo, que jura (jura não, porque jurar é pecado) promete
Que a Amazônia não é o pulmão do mundo

Há um tempo pra cada coisa: tempo para ser bonito
Tempo para ser feio
Mas, onde arrumar tempo para ser tempo?
Será que, depois de velho, o belo modelo dos Emirados
Vai ser permitido de entrar na Arábia?
Ou, antes, ele terá aprendido a ser nem velho nem novo,
Velho-novo ou Novo-velho?
Talvez, antes, vejamos Dorian Grey andando de mãos dadas
Com seu alterego
E reste atrás deles uma moldura envolvendo um raso buraco negro.




24 de abril de 2013

As luas de São Jorge no ventre de Clarice Goulart Lispector

Foto: Ricardo Chaves



Álvaro Lins não errou somente na escrita do nome de Clarice Lispector, a quem chamava de “Clarisse”. Equivocou-se também na crítica que fazia dela: “A Sra. Clarice Lispector não atingiu todo o objetivo da criação literária. Ainda não está no domínio daquela experiência vital que permite a realização de um romance completo". E errou ainda ao achar que Clarice teria um dia a pretensão de se tornar uma morta de sobrecasaca: logo a elegante Clarice...

Ora, como é sabido por quem bem o sabe, Clarice é uma das inauguradoras da escrita fractal, que convida para a literatura as fronteiras indecisas, o que torna possível fazer o toque do despertador nos acordar para o sonho ou o sonho nos dormir para a realidade. E, mesmo em tom de desfeita, Lins reconhece este caráter na ainda jovem Clarice: "a visão do mundo numa atmosfera de sonho, a confusão entre memória e imaginação, a deformação alucinada dos fenômenos sob o efeito da subjetividade”.

São Jorge - Pintura de Frederico Marques
Mas esta “deformação alucinada” é o que permite a Clarice Lispector transitar numa zona de sentido em que a antítese é destronada. É isso que permite a ela enxergar na natureza que apodrece o casulo em que é gestada a vida em sua forma mais sublime. Ou de enxergar num asqueroso rato ruivo uma espécie de intercessor que a aproxima de Deus, a quem ela irônica e carinhosamente chama de “a invenção humana” e admitir que “Mágico também é o fato de termos inventado Deus e que, por milagre, Ele existe”.

Certamente talvez, ela tenha cogitado a hipótese de que Deus se permite inventar e assim misturar-se às tempestades do ser do ser.

No papel de Clarice, Beth Goulart meio que psicografa esta teoria clariciana e investiga a ideia da escritora de que, por meio da palavra, a carne divina se faz verbo e habita entre/dentro-fora de nós.

Informalmente, o cenário do espetáculo, Simplesmente eu, Clarice Lispector, torna Clarice filha de São Jorge. A iluminação lembra que a obra da escritora pode ser decomposta nas fases da lua e que as fases da lua podem ser decompostas em tangos e os tangos em espelhos e os espelhos em personagens e os personagens em nós.

O cenário da peça é por vezes lua cheia, por vezes meia, por vezes Nova. E é nas luas novas que Clarice se reencontra com o passado, com a herança judaica e com a saudade de Deus, saudade que convida a escritora a inventá-lo e, como o Rei Davi, celebrar o fato de que a escuridão ao lado da infinitude divina pode ser mais luminosa do que a luz na companhia solitária das certezas.

A escrita de Clarice reescreve o mito de São Jorge, abrindo-nos para a ideia de que, nas luas do espírito humano, somos o dragão de nós mesmos e que, por vezes, vale a pena abaixar a espada e ouvir o que esta fera em nós tem a dizer, inclusive quando esta fera se chama doçura.

O espetáculo orquestra a luz da lua, dando musicalidade a seus acenderes e apagares. Assim, organiza o pensamento de Clarice em atos de fé, de amor e de contrição e faz da escrita poética uma confissão que tem por função nos tornar cúmplices do Infinito e tornar as deformações alucinadas do mundo a espada com que aprendemos a nos des-matar até redescobrir nos desertos da existência onde a natureza se esconde.

Ao fim da peça, depois de vários minutos de aplauso, Beth Goulart agradeceu a oportunidade de intepretar Clarice no Recife, terra em que ela foi dada à luz depois de ter nascido na Polônia. Era recifense seu sotaque, apesar de sua língua presa tê-la feito ser confundida a vida inteira com uma russa.

Em seguida, Beth Goulart Lispector se despediu da plateia com um sinal da cruz.

A Mahely e Lylian, que nos aproximam de quem amamos.



22 de abril de 2013

Cãntico do Antes




Fonte da imagem: + Tattuagem
 Antes


Tu irás me deixar antes de eu dizer
Antes de meu prematuro silêncio ter a chance de nascer em teu colo
E cair de verde da árvore das esperanças?
Antes de tantos antes que esperam por uma passagem de primeira classe
A bordo da clandestinidade, isto é, do teu sorriso?:




Tu vais antes de ajudar meu cansaço de viver a encontrar um amparo onde
Teu abraço me desenvolva com a veste da prata e me envolva com a nudez do ouro?

Tu vais antes de desmentir a ferida do nunca com teu rosto suspeito
Suspeito do crime de beleza triplamente qualificada: pela sisudez, pelo silêncio e pela doçuraranzinzaacanhadaternasubjacentementecalorosaplenilúniataribanianamenteinesquecível?

Tu queres me deixar antes de tirar do relento o beijo que a saudade acolhe um grau abaixo do zero absoluto dos meus dias?
Antes de apagar com tua nobreza as chamas que consomem o iceberg que fez usucapião do meu ser sob a falsa identidade de alma?

Tu partirás antes que teu nome secreto batize minha derradeira lágrima só
E me traga a alegria de vê-la chorada na companhia do ponto cardial que reinventa, em teu peito, 
A rosa dos ventos?
Da tua mansidão não declarada?

Antes de abrires a porta do céu com o bater de tuas asas
Com esse vento que não sopra e faz a chama da minha vida
Arder em tempestade?

Antes de eu deixar de te amar como maior prova de amor que possa de mim partir
Prova que torna a evidência um dividido aceno trêmulo nadando na mecha de uma vela em coma?
E diante dessa mentira grávida de verdade sublimada,
É capaz de que acredites em mim
E diante de tua galhofa,
Tomo consciência de que te amo
Pois com prazer sou rido
Se isso te permite sorrir
De graça sou palhaço
Se os acrobatas puderem fazer ninho em teu sonho
E a criança puder levantar voo em tua realidade


O medo e a timidez têm me represado
Mas, estou certo que
A lua clara de um Debussy abrirá o adeus das feridas
E dele extrairá a chave, isto é, a paz que sinto ao
Sentir a presença de Alguém:
Sonho que nenhuma porta trancada consegue calar.


Claire de lune - Debussy
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