24 de abril de 2013

As luas de São Jorge no ventre de Clarice Goulart Lispector

Foto: Ricardo Chaves



Álvaro Lins não errou somente na escrita do nome de Clarice Lispector, a quem chamava de “Clarisse”. Equivocou-se também na crítica que fazia dela: “A Sra. Clarice Lispector não atingiu todo o objetivo da criação literária. Ainda não está no domínio daquela experiência vital que permite a realização de um romance completo". E errou ainda ao achar que Clarice teria um dia a pretensão de se tornar uma morta de sobrecasaca: logo a elegante Clarice...

Ora, como é sabido por quem bem o sabe, Clarice é uma das inauguradoras da escrita fractal, que convida para a literatura as fronteiras indecisas, o que torna possível fazer o toque do despertador nos acordar para o sonho ou o sonho nos dormir para a realidade. E, mesmo em tom de desfeita, Lins reconhece este caráter na ainda jovem Clarice: "a visão do mundo numa atmosfera de sonho, a confusão entre memória e imaginação, a deformação alucinada dos fenômenos sob o efeito da subjetividade”.

São Jorge - Pintura de Frederico Marques
Mas esta “deformação alucinada” é o que permite a Clarice Lispector transitar numa zona de sentido em que a antítese é destronada. É isso que permite a ela enxergar na natureza que apodrece o casulo em que é gestada a vida em sua forma mais sublime. Ou de enxergar num asqueroso rato ruivo uma espécie de intercessor que a aproxima de Deus, a quem ela irônica e carinhosamente chama de “a invenção humana” e admitir que “Mágico também é o fato de termos inventado Deus e que, por milagre, Ele existe”.

Certamente talvez, ela tenha cogitado a hipótese de que Deus se permite inventar e assim misturar-se às tempestades do ser do ser.

No papel de Clarice, Beth Goulart meio que psicografa esta teoria clariciana e investiga a ideia da escritora de que, por meio da palavra, a carne divina se faz verbo e habita entre/dentro-fora de nós.

Informalmente, o cenário do espetáculo, Simplesmente eu, Clarice Lispector, torna Clarice filha de São Jorge. A iluminação lembra que a obra da escritora pode ser decomposta nas fases da lua e que as fases da lua podem ser decompostas em tangos e os tangos em espelhos e os espelhos em personagens e os personagens em nós.

O cenário da peça é por vezes lua cheia, por vezes meia, por vezes Nova. E é nas luas novas que Clarice se reencontra com o passado, com a herança judaica e com a saudade de Deus, saudade que convida a escritora a inventá-lo e, como o Rei Davi, celebrar o fato de que a escuridão ao lado da infinitude divina pode ser mais luminosa do que a luz na companhia solitária das certezas.

A escrita de Clarice reescreve o mito de São Jorge, abrindo-nos para a ideia de que, nas luas do espírito humano, somos o dragão de nós mesmos e que, por vezes, vale a pena abaixar a espada e ouvir o que esta fera em nós tem a dizer, inclusive quando esta fera se chama doçura.

O espetáculo orquestra a luz da lua, dando musicalidade a seus acenderes e apagares. Assim, organiza o pensamento de Clarice em atos de fé, de amor e de contrição e faz da escrita poética uma confissão que tem por função nos tornar cúmplices do Infinito e tornar as deformações alucinadas do mundo a espada com que aprendemos a nos des-matar até redescobrir nos desertos da existência onde a natureza se esconde.

Ao fim da peça, depois de vários minutos de aplauso, Beth Goulart agradeceu a oportunidade de intepretar Clarice no Recife, terra em que ela foi dada à luz depois de ter nascido na Polônia. Era recifense seu sotaque, apesar de sua língua presa tê-la feito ser confundida a vida inteira com uma russa.

Em seguida, Beth Goulart Lispector se despediu da plateia com um sinal da cruz.

A Mahely e Lylian, que nos aproximam de quem amamos.



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