25 de fevereiro de 2012

"Vou morrer em trinta dias": as últimas e primeiras palavras de Paulo Coelho

"Natureza morta com caveira”, de Philippe de Champaigne (1602-1674). No Musée de Tessé)



Um amigo, depois de alguns anos sem me reencontrar, olhou pra mim e disse: "Quanto tempo, menino! Pensei que só iria te reencontrar numa sessão espírita!".

Ao ouvir isso, senti uma tranquilidade que, de tão destoante da minha personalidade, beirava a morbidez. Comumente, minha reação seria a de ficar indignado e mandar esse meu amigo ir agourar o cão ou então ir cheirar o seu cu (o cu dele próprio e não o do cão). É que quando somos envolvidos, de repente, por verdades que precisamos esquecer para preservar a integridade de nosso aparelho psíquico, a primeira reação é a de sacar uma arma e disparar uma saraiva de palavrões.

Fala-se dos anticorpos, mas se esquece de que o esquecimento é, talvez, a principal defesa do nosso organismo. Porém, enquanto os anticorpos nos defendem de agentes estranhos, o esquecimento nos defende de agentes familiares como a frustração e a morte.

Paulo Coelho soube há algum tempo que seu coração estava 90% obstruído e que tinha somente trinta dias de vida. Mas, a vida reserva surpresas...

Outra reação comum, ao se sentir na nuca o bafo gélido da morte, é a Síndrome de Rei Davi. Entre os sintomas desta síndrome está uma certa mania de perseguição. Começa-se a se pensar sobre pessoas que anseiam nossa morte e sobre os motivos deste anseio. Antes de morrer, os afetados por esta síndrome, vestem-se de alvo (uma pré-mortalha). Acreditam que a morte seria o coroamento dos ataques de dardos envenenados de invejas e maldições enviadas por inimigos que esperariam nossa morte para sair triunfantes do ocultamento.

"Ele prometia ser tanto, mas morreu sendo tão pouco, kkkkkkkkkkkkkk": os acometidos pela síndrome de Rei Davi temem menos a morte do que este tipo de escárnio post-mortem.

Quão triste é enterrar uma pessoa como se ela fosse uma promessa frustrada, um coito interrompido. Cristo estava certo ao dizer a seus apóstolos: "Deixem que os mortos enterrem seus mortos".

Normalmente, os que enterram os que morrem são tão ou mais mortos do que os falecidos, pois negam aos que se vão a chance de serem restituídos do que, em vida, foram sonegados: a grandeza anônima. Passa-se anos lutando para se alcançar uma vitória. Quando se consegue, o esforço de anos é jogado no porão do anonimato e só se escreve nas memórias póstumas a "glória" de se ter ganho uma coroa de louros, que murchará...

"Ela tanto conquistou, mas morreu na merda...". Os mortos que enterram seus mortos tentam disfarçar a fedentina de sua alma putrefata, roubando o perfume das vitórias que os falecidos alcançaram em vida. Pouco importa se estas vitórias foram ou não reconhecidas. Mozart, por exemplo, foi enterrado com as pompas de um indigente, mas isso não fez da sua vida um gesto em vão.

Os mortos-vivos acendem velas em seus smartphones para homenagear Steve Jobs, enquanto enterram vivos aqueles que não conseguem deixar a marca morta de uma pegada na calçada da fama. Na verdade, a homenagem a Steve Jobs tem menos de consideração e mais de um instinto sádico: a vontade dos mortos-vivos de jogar a última pá de terra sobre uma estrela.

Um marido tentou assassinar sua amada esposa com mais de cinco tiros. Depois, ele para se certificar de que ela ficaria bem morta, a amarrou no pára-choque traseiro do carro e a saiu arrastando pela estrada afora. Surpreendentemente, ela sobreviveu...

Um rapaz levou um tiro no peito. A medalha de Santo Expedito que ele trazia não sobreviveu ao tiro, mas ele sim...

Outro rapaz levou um tiro. Sua cabeça se tornou um mausoléu para a bala. Ele continua vivo e bem...

Santo Estevão morreu apedrejado. Quanto mais seu rosto era desfigurado pelas pedradas, mais ele refletia beleza e glória, causando ira e desconcerto nos que lhe martirizavam...

Paulo Coelho passou por uma cirurgia, por meio da qual seu coração foi desobstruído. Esta cirurgia também cortou o circuito do relógio que fazia a contagem regressiva para sua morte....

Inútil é tentar fazer da morte o ajuste de contas entre a frustração e a surpresa. Os mortos que enterram seus mortos procuram, na hora do sepultamento, tirar a prova dos nove da conta do sucesso ou do fracasso. Mas, como incluir na conta os sucessos implícitos aos fracassos e os fracasssos implícitos aos sucessos?

Darwin foi um gênio (seja lá o que esta palavra queira dizer), mas na conta de sua genialidade existem momentos de depressão, de erro e de paralisia. Mas isso não impediu que ele fosse surpreendente. Menos devido a suas descobertas científicas do que a seu esforço para colher o sucesso implícito em seus fracassos.

É muito bonito ver a gratidão de Paulo Coelho a Deus por todos os sonhos que realizou em vida. Mas, também é belo poder valorizar os novos sonhos que se erguem de nossas frustrações. Essa força de ressurreição evita que nos conformemos em ser e fazer dos outros retratos monstruosos do pleno sucesso ou do pleno fracasso, sem direito à surpresa proporcionada pela implicitude.

A morte, de algum jeito, planta em nós o impulso de resgatar o sucesso que se esconde no fracasso (ou o contrário). Mas, é opção de cada um pagar o preço desse resgate ou se tornar cúmplice do sequestro.



Paulo Coelho fala sobre diagnóstico médico que lhe deu trinta dias de vida

24 de fevereiro de 2012

Ilustres escritores desconhecidos I - Amizade: crime não tipificado e com prazo de validade?

Maxi Anel
Maxi Anel - By Karla Vidal

O conto, a seguir, é de Antonio Seixas, escritor baiano do século XVIII. Na versão original, parece ser um texto que fala sobre duas pessoas "amigadas" ou "amancebadas", enfrentando uma crise de relacionamento. Mas, acho que é um texto capaz de falar sobre a amizade em geral. Por isso, fiz uma livre adaptação. Troquei muitas expressões para deixar o conto mais "contemporâneo". O contato que tive com o conto foi quando era adolescente. Hoje, não tenho mais acesso ao original. Mas, mesmo como minha interferência danosa no texto, não deixa de valer a pena entrar em contato com as ideias do ilustre desconhecido Antonio Seixas. No fim, acho que se salvaram-se todos, pois a "essência" do texto foi preservada. Como recolhi esse texto quando era adolescente, não anotei detalhes sobre o escritor:



Amizade: crime não tipificado e com prazo de validade?

Desliguei o chuveiro que, fazia uns trinta minutos, escorria meu descaso e minha omissão. Diante da minha reação, a nuvem foi embora sem pedir licença. Desci da charrete que vagava nas ruas da minha lembrança assim como um fato escorre pelas mãos do agora (e ainda dizem que os fatos são concretos quando não passam de vento nas mãos de poeira do instante).

Nas ruas daquela lembrança, o carro em que estava se aproximava de uma esquina terrível. Foi quando minha amiga me disse:

- Porque tu sabes, não é? Quem garante que amanhã um de nós não perca a vontade de ser amigo do outro? Isso pode acontecer a qualquer momento. Vai saber!

Depois que ela disse aquilo, entendi que para algumas pessoas a amizade tem prazo de validade. Eu já havia compreendido que a amizade é um tipo de crime, não tipificado por código penal que seja. Mas, demorei para entender como um crime não tipificado tinha prazo para prescrever. E o pior era saber que o juiz a decretar esse prazo era um torpe “Vai saber!”

Pensei bem e vi que a esquina da desolação já tinha ficado para trás (ou para frente visto que o terreno da memória anda de trás para adiante). Logo o veículo entraria na rua da Consolação. Lá, pediria parada e entraria na livraria para comprar um livro e, de ato, uma ajuda.

Comprei o livro. Tudo ficou claro de repente. Mas, uma submemória enxerida quase ofuscou aquele brilho. Era a voz do meu avô dizendo que muita clareza de repente era como pasto para burro que pensa ser trovador...

Mas, inda bem que consegui amordaçar aquela intrusa e mergulhei tranquilamente na clareza. Era justo que minha amiga pensasse que o prazo de validade de nossa amizade aproximava-se do fim.

Eu já havia cumprido aquilo para que tinha sido feito. Fui várias vezes adereço que ela exibia quando queria abalar em alguma festa, fazendo inveja a outras amigas. Ela já tinha me submetido a todas as acareações possíveis, a fim de encontrar o mais de compatibilidades possível entre duas pessoas. Eu já a havia desapontado três vezes. Menti as piores mentiras que se pode mentir: menti a idade, o peso e omiti quem amava. Como uma pessoa, depois de tais mentiras, poderia dizer alguma verdade? Só então entendi o olhar dela que me dizia: "Diga a verdade e depois volte para sua caverna!".

Outra: eu tinha cometido um pecado que faz o prazo de validade decair mais rápido que a vida-útil de uma pedra filosofal vagabunda. Eu a fiz duvidar de que eu era burro. Como uma amizade com prazo de validade pode suportar quando se descobre que o amigo burro não é burro? Só se a inteligência recém-descoberta fosse um adereço complementar a ser exibido por minha amiga às suas outras amigas. Mas, nem isso...

Enquanto eu estava dentro do prazo de validade, quando discordava do que ela dizia era considerado perspicaz, inovador. Mas, próximo de expirar a validade, cada discordância minha soava como um contra-ataque num jogo de esgrima.

O golpe fatal foi quando ela começou a dizer que queria aproveitar comigo tudo quanto fosse possível enquanto era tempo. Senti que logo ela contrataria um véu de silêncio para morar entre nós e como seria difícil a nossas mãos seguirem dadas, tendo de enfrentar aquele deserto de gelo!

Rapidamente, ela começou a tomar todo gesto e palavra meu como um veio de maldição implícita. Eu me tornava podre para ela. Os livros que eu indicava eram tentativas de desestruturar sua psiquê, os sonhos que confessava eram tentativas de roubar dos sonhos dela atalhos para minhas ambições. Os filhos que não tinha eram radiografias de minha despeita incontida pelos filhos que ela haveria de ter... Eu havia me tornado um tropeço para os passos que ela ainda não tinha dado e um efeito retardado de queda para os caminhares que ela já havia perfeito. 

Eu só não compreendo porque enquanto meu prazo de validade se esgotava, eu enxergava minha amiga como um fonte de águas pulsantes que recolhia os prazos à sua própria insignificância e sarava no tempo as feridas da esperança. Meu prazo de validade terminou e eu apodreci, mas minha podridão, por força do que sentia por ela, caía em si mesma e como uma mão de adubo redentor salvava uma semente de luz que estava presa entre destroços.

Era uma luz tênue da qual uma rama saltou num repentino clamor. Esta rama rapidamente se tornou um olhar que nunca se cansava de procurar a perda e o reencontro no rosto de minha amiga. Aquela podridão autofecundada não tardaria em se tornar um olhar de colheitas difíceis, mas gratificantes. Só faltava um olhar recíproco para que chovesse.

Depois, a suposta rua da memória assustou-se, acordou-se e deu-se conta de que era um sonho cujo prazo de validade havia vencido. 

22 de fevereiro de 2012

Peguem suas máscaras! O Carnaval foi invadido pelo totalitarismo!


Bebeus - pintura de Marcos Bastos (óleo sobre tela)


A relação entre o carnaval e a quaresma – período iniciado na quarta-feira de cinzas - é uma tentativa de administrar dois apelos básicos da cultura:  à repressão e à liberação.

O comum seria pensar o carnaval como relacionado à liberação e a quaresma ao controle dos instintos. Mas tem-se observado um modo estranho de a repressão se infiltrar no carnaval.

Um dos fatores que caracterizam a liberação é que a ambiguidade ganhe voz. No tempo comum, o binarismo é a regra. Nisso, a era dos computadores é ultraconservadora, pois, com seus códigos binários, reafirma a lógica cultural predominante ao longo da história: Ou é ou não é, Ou quente ou frio... O carnaval, ao redimir a ambiguidade, salva o morno (o que está entre o quente e o frio, a região de nuances entre o branco e o preto) de ser vomitado.

A máscara, um dos principais símbolos da festa carnavalesca, mais do que ocultar, expõe a dimensão ambígua da identidade. O mascarado expõe a tensão humana entre diferentes identidades. Coisa que o tempo comum tenta velar por trás do mito da identidade centrada.

O carnaval brinca com a fronteira entre pobreza e riqueza, entre masculino e feminino. Porém, o que tem acontecido, nesse período, é o esforço de alguns para tornar imóveis essas fronteiras, quando não para aniquilar a alteridade. Isso, em certa medida, explica atitudes como a de pessoas que, durante o carnaval, resolvem atear fogo em mendigos, “brincando” de aniquilar o que consideram ser intolerável: a presença da diferença.

Semelhante intolerância à diferença aconteceu durante a apuração do resultado do desfile das escolas de samba de São Paulo. A violência e a estupidez que foram presenciadas expressam um desejo não só de boicotar a diferença como de silenciá-la, de jogar fora não só a ambiguidade (a fusão entre identidades), mas também o binarismo (a oposição entre as identidades).

Estranhamente, busca desfilar no carnaval o anseio totalitarista por uma cultura em que o fantasma de uma voz única - livre da ambiguidade e do binarismo - reine absoluto. Este anseio sem face e sem nome tem sido posto em prática sem que se recorra a qualquer máscara.

As pessoas condenam o uso de máscaras, acusadas de ser inimigas da franqueza. Mas, o uso da máscara, no carnaval, alerta para o perigo que a franqueza total pode representar, quando se torna máscara descarada da ausência de limites à ultrapassagem dos limites.     ´

Esse mundo - Vange Leonel

15 de fevereiro de 2012

O toque como esconderijo da espera como esconderijo da árvore do amor

Cena do filme A árvore do amor (2010)

Algum velho sábio (sempre há um velho sábio quando não temos coragem de dizer pessoalmente o que sentimos) dizia que no gesto de tocar quem se ama moram dois relógios: um atrasado e um adiantado.

Um toque pode revelar precipitação e angústia, o desejo de invadir o outro com hora marcada para descartá-lo. Por outro lado, o toque pode marcar um compasso de espera, como ponteiros de um relógio que, por mais distantes que estejam, aceitam a demora como pré-requisito do pleno encontro que, caso tudo dê certo, ocorrerá à meia-noite ou ao meio-dia.

O toque como morada de um relógio atrasado ou reservatório do encanto da disposição de esperar pelo outro. Este é o cenário mais marcante, dentre as belas paisagens do filme A árvore do amor, dirigido por Zhang Yimou.

Claro que o desejo de adiantar o relógio nunca é silenciado completamente. E isso faz com que o sentido do tato migre para os demais sentidos, tentando transformá-los em sucursais do toque. E assim ocorre com o olhar. Em português, o verbo olhar perde a sutileza. Ver, mirar, encarar, observar, despir. Tudo meio que se confunde no significado “olhar”.

Mas, quando a espera que mora no toque migra para o olhar e este se torna tato, entra em cena o verbo “to gaze”: contemplar. E se existe uma forma de tocar o que ainda não é possível alcançar, esta forma é olhar (esperar) (contemplar).

A árvore do amor fala sobre os processos migratórios do toque e como ele tenta acertar os dois relógios que nele habitam. Jing e Sun, os apaixonados do filme, tentam lidar com o desejo de se tocarem, com os interditos que a cultura chinesa (em pleno auge da revolução comunista de Mao Tsé-Tung) impõe ao toque (em sentido amplo e estrito), e também com o investimento na espera, como forma de conferir valor ao toque.  

Em uma das cenas, eles desejam tocar a mão um do outro e, para enfrentar o interdito, fazem o seu toque migrar para um galho que, segurado por ambos, os une. Cada olhar dos personagens, o primeiro beijo no rosto, o primeiro abraço. Toda aproximação entre eles é como se os ponteiros do relógio rezassem para chegar o momento de se encontrarem meia-noite ou meio-dia. E, neste momento, os amantes poderiam contemplar o impossível: ver cumprir-se o mito da árvore de flores brancas que, ao ter o solo onde está plantada regado pelo sangue dos combatentes da revolução comunista, teria se tornado capaz de produzir flores vermelhas.

"Eu vou te esperar até que você complete 29 anos e, se não for possível, então esperarei a vida inteira". Esta declaração de amor do personagem Sun expõe o que o gesto de tocar tenta esconder: a ruidosa fronteira entre possível e impossível

12 de fevereiro de 2012

Quem for fã de Whitney Houston atire a primeira estrela: sobre a obrigação de brilhar

Whitney Houston cantando "I Didn't Know My Own Strength" na premiação American Music Awards de 2009  
Fonte: UOL Entretenimento



A Whitney Houston, com minha admiração



A fama, desde muito tempo, é um contrato, uma obrigação estabelecida entre partes. Uma destas partes, o ídolo; a outra parte é o algoz, ou seja, o fã.

A proximidade sonora entre as palavras fã e afã não é casual. O fã é aquele que é tomado pelo afã, isto é, por sentimentos de sofreguidão, afobação, aflição, ansiedade e uma parcela de zelo e cuidado.

As adjetivações utilizadas para demarcar a posição do ídolo, com relação ao fã, dão ideia do peso da obrigação que envolve estas duas partes contratantes. O ídolo é representado como uma estrela, ou seja, um ser de luz própria que tem de fazer da própria solidão combustível para cumprir a obrigação de brilhar continuamente.

É um brilho paradoxal, pois se exige do ídolo que ele reluza em plenitude, mas se cobra dele que seja capaz de, com sua luz, curar dores e vazios de pessoas vitimadas pela sombra do complexo de inferioridade.

E, quão cruel as demandas para o astro. Exige-se dele que seja, ao mesmo tempo, o pleno domínio da técnica e da emoção. O astro, como um artista na corda bamba, é obrigado, contratualmente, a não cair: no máximo leves oscilações para satisfazer a pequena dose de sanha sádica que há no coração do fã.

Tomando emprestada a expressão cunhada por Aldous Huxley, pode-se dizer que se espera do ídolo que ele seja um exímio engenheiro da emoção, capaz de ser, na medida exata, a tristeza, a alegria, a raiva, a quietude e, até mesmo, o ridículo, que, na medida certa, fará dele uma ousada “divindade”. Do ídolo é cobrado que seja um exímio chef de cuisine, que serve a si mesmo como prato principal na pedra de sacrifício dos vazios do ser humano.

Como se sabe, as estrelas que brilham no Céu já estão, em sua maioria mortas. A luz que vemos é um efeito retardado do brilho que viaja milhares de anos-luz até impressionar nossas retinas.  Nessa constatação, percebe-se como as metáforas que utilizamos podem esconder secreta crueldade.  Aqueles obrigados a brilhar, ao aceitarem o pseudônimo de astros e estrelas, são a crônica de uma morte anunciada. 

Coroamos o astro com uma “plenitude” alicerçada nas nossas próprias frustrações. Esta“plenitude”  é edifício frágil erguido pelo som do aplauso e desmoronado pelo som da vaia. E, como diria Brecht, aplauso e vaia são igualmente impostores: refletem a cruel obrigação imposta aos ídolos: de serem eternidade erguida sobre escombros de frustração e efemeridade.

Como se situam as divas, os astros, os fenômenos, os gênios, as sumidades: situados às margens de paradoxos que querem tragá-los para o abismo?

A linda música One moment in time, interpretada por Whitney Houston, reflete alguns destes paradoxos. Exemplo é a cobrança, feita na letra desta canção, de que se seja vencedor a vida inteira: vencedor de uma vitória representada pela pressão de ser uns poucos instantes de “glória” congelados no tempo ou de ter sempre todas as respostas ou tornar a distância de realização dos sonhos menor que o intervalo entre um batimento cardíaco e outro.

O amor do fã traz num bolso secreto pedras preparadas para serem atiradas no ídolo. Estas pedras têm endereço certo: as marcas do tempo e o tédio que o fã projeta nos gestos do ídolo. O pecado do ídolo é aceitar deitar-se com as frustrações e o medo da morte, que assolam a humanidade cruel e sedenta.

Diferente da relação entre fã e ídolo é a admiração. Quando se admira alguém, coloca-se este alguém não na vaga de uma divindade que se tenta substituir. Como o prefixo “ad” indica, admirar é unir-se com outra pessoa em pensamentos, palavras, atos e, até mesmo, omissões, para mirar a luz. Quem admira busca com o outro o caminho e, ao menos, dispõe-se a enfrentar com ele as sombras e os efeitos do tempo e da distância. 

A admiração não se nutre da eternidade ou da efemeridade, mas sim da intensidade do tempo gravado na companhia humana (do outro e de si mesmo). Para a admiração, não há fórmulas, trejeitos ou roteiro e quem admira sempre acaba quebrando cláusulas contratuais.

Na música One moment in time, também está refletido o significado da palavra admiração: o instante do tempo em que o eu se dá conta de que “I'm only one, but not alone” e se dispõe a, junto a outros alguéns, buscar “the finest day” que “is yet unknown”.



One Moment In Time

Each day I live
I want to be a day to give the best of me
I'm only one, but not alone
My finest day is yet unknown
I broke my heart for ev'ry gain
To taste the sweet, I face the pain
I rise and fall, yet through it all this much remains
I want


One moment in time
When I'm more than I thought I could be
When all of my dreams are a heart beat away
And the answers are all up to me
Give me one moment in time
When I'm racing with destiny
and in that one moment of time
I will feel, I will feel eternity


I lived to be the very best
I want it all, no time for less
I've laid the plans
Now lay the chance here in my hands
Give me


chorus


You're a winner for a lifetime
If you seize that one moment in time
Make it shine
Give me


chorus


i will be, i will be free

Um Instante No Tempo

Cada dia que vivo
Eu quero que seja um dia para dar o melhor de mim.
Eu sou única mas não [estou] sozinha,
Meu melhor dia ainda não é conhecido.
Eu quebrei meu coração por cada ganho,
Para provar o doce eu enfrentei o sofrimento.
Eu levanto e caio, mesmo assim, em meio a tudo, isto persiste...
Eu quero


Um instante no tempo,
Quando eu for mais do que pensei que poderia ser,
Quando todos os meus sonhos estiverem a uma batida de coração de distância
E as respostas couberem todas a mim...
Conceda-me um instante no tempo,
Quando eu estiver correndo com o destino,
Então, naquele instante do tempo,
Eu sentirei, eu sentirei a eternidade...


Eu tenho vivido para ser a melhor,
Eu quero tudo, não há tempo para menos.
Eu tracei os planos,
Agora tenho a chance aqui nas minhas mãos.
Conceda-me


Refrão


Você é um vencedor durante uma vida
Se você aproveitar aquele instante no tempo,
Faça-o brilhar...
Conceda-me


Refrão


Eu serei, eu serei livre

9 de fevereiro de 2012

A força orgiástica do perdão e da amizade na poesia de Wando


Não conheci Wando, mas sei que ele era um grande amigo. Isso porque só um grande amigo para dizer que você não é puro e jogar na sua cara que seu passado é digno de te machucar. Mas, um grande amigo diz isso não sem antes dizer que é capaz de se virar do avesso para te abraçar e pedir que, depois da mágoa, você espere o amanhã, quando os corações estarão prontos para se entregar de novo um ao outro.

Meu amigo Wando, que não tive o prazer de ver pessoalmente, mas que conheci pessoalmente, pois nada mais pessoal que a vontade de não ter vergonha, vontade esta impressa na familiaridade intraduzível da melodia de suas músicas.

A vontade de não ter vergonha é uma potência de primeira grandeza. Para muitos não ter vergonha é sinônimo de devassidão. Mas, quando se devassa a falta de vergonha, em busca de outros significados, percebe-se que o brilho da sem-vergonhice é de vastidão maior. A sem-vergonhice mais brilhante é a de quem desafia o pudor de perdoar e de aceitar o perdão. E, ao menos de quando em vez, vale a pena trairmos nossos parceiros fixos – a sede de julgar e de não se render - e nos arreganharmos para o desejo de nos darmos ao perdão e de darmos o perdão.

Enganam-se os que pensam que o erotismo era a maior chama da poesia de Wando. Em suas canções e atitudes, Wando incita o perdão. 

A mulher que se rende ao prazer orgiástico de comer pêssego em calda, dado em sua boca por um poeta, não é uma devassa, mas sim uma mulher que aceitou perdoar a si mesma por trair a moral castradora. 

Conheci uma senhora, já de idade avançada, que vivia em casa ruminando o silêncio e a seriedade. Mas, ao ir a um show de Wando e passar pela terapia do pêssego em calda, riu o riso debochado da liberdade.

Wando perdoa, em suas músicas, o amor vira-lata, aquele capaz de ser intenso a ponto de se tornar amizade. E de se doar, ao menos de vez em quando, à força vagabunda do perdão e de demitir, ao menos de quando em vez, o recato da intransigência.

Em uma certa poesia, Wando compara as marcas que o amor deixa ao cio de uma loba e ao uivo de um cão. Durante anos, não achei uma interpretação para essa imagem poética. Hoje, arrisco uma hipótese. O cio de uma loba é escandaloso como um amor incapaz de se doar e que, ao se negar a chance de perdoar e de ser perdoado, vive à espera de uma esperança que nunca chega.

Muitas vezes, somos tão seguros de nós em nosso orgulho de nos negarmos a perdoar e a aceitar o perdão. Somos tão preocupados em estarmos certos e esquecemos que tanta certeza pode ser, em certos casos, apenas um espinho que mantém nosso pé suspenso no ar da soberba. E, enquanto não aceitamos ser erro, ao menos de vez em quando, não conseguimos encarar o fato de que, na real, não há caminhada sem se colocar no chão os pés calçados pelos espinhos dos relacionamentos.


Música "Minhas amigas" - com Nando Reis


A música "Moça"


A música "Chora coração"


A música "Amor vira-lata"

7 de fevereiro de 2012

Charles Dickens, Sarah Sheeva e o fenômeno do Stand-up Tragedy-Comedy

Charles Dickens


Charles Dickens dedicou os últimos anos de sua vida à transmissão ao vivo de seus romances. O escritor inglês transformou a leitura pública de livros, comum entre familiares e em pequenos grupos, em espetáculo.

Esta atividade revelou que Dickens, além de grande escritor, era também um talentoso ator, fazendo, facilmente, a audiência oscilar entre as lágrimas e o riso. Sozinho em cena, o autor de Oliver Twist foi um grande precursor do fenômeno contemporâneo do Stand-up comedy. Se bem que, no caso de Dickens, ele era ao mesmo tempo um Stand-up comedy e um Stand-up tragedy.

Não foi só neste setor que o escritor revelou seu pioneirismo. Ele também é considerado um dos responsáveis pelo lançamento do romance de tipo policial e uma das primeiras celebridades a se divorciar, em plena atmosfera de ranço conservador da era vitoriana. Dickens ficou conhecido por sua lucidez. Ele conseguia reunir, em suas obras, crítica social e entretenimento, não se deixando controlar por nenhuma tendência literária em particular. 

O romance ao vivo fez Charles Dickens experimentar a sensação de se deixar levar pelos descaminhos da emoção. Embora, haja os que digam que a entrega de Dickens ao mundo do espetáculo é decorrente do fato de ele ter se apaixonado pela atriz inglesa Ellen Ternan. Charles e Ellen ficaram, informalmente, juntos até a morte dele. Depois disso, ela se casou com um reverendo, sem revelar nada de seu passado.

Dickens deixou-se arrebatar de tal forma pela atividade do Stand-up romance, que se chega a apontar o esforço desprendido durante os espetáculos como causa do colapso que o levaria à morte, com apenas 58 anos.

O escritor inglês tem algo em comum com a missionária Sarah Sheeva. Ambos investem grandes quantidades de energia emocional e psíquica para arrancar a palavra escrita de sua introspecção. A filha de Baby Consuelo (do Brasil), por meio do que ela chama de culto das princesas, rompe o silêncio monástico da escrita bíblica, conferindo-lhe uma sonoridade dramática banhada no destemor de Dickens de oscilar entre comédia e tragédia. Neste tipo de culto, a missionária insere a Bíblia no ambiente do espetáculo, fazendo, em certa medida, o que Dickens faz com seus livros.

Talvez Sarah Sheeva vá um pouco além. O modo como ela associa metáforas bíblicas, experiência pessoal e imagens literárias para exprimir sua crença (ou defender sua tese) (ou compor seu romance) revela a ousadia de uma obra que oscila entre o calor da loucura e a frieza do cálculo racional. E ela transita entre loucura e lucidez por meio da fronteira representada pelo humor.

Culto das princesas
Durante uma entrevista, Sarah Sheeva foi perguntada, com desdém, sobre como era a voz de Deus, que ela dizia ter ouvido. Ela responde, com uma lucidez/loucura comparável a de Saussure, que não teria como descrever em termos racionais a voz de Deus, pois era algo que ela ouvia fora de si como um alto-falante que não emite sons e dentro de si como um silêncio que fala. Ora, consciente ou inconscientemente, Sheeva descreveu a voz divina como uma espécie de imagem acústica, próxima da definição de Saussure de significante linguístico.

Dickens faz de sua obra uma destemida articulação entre traumas passados, contexto social e certa dose de messianismo, tornando confusas as fronteiras entre o livro e o palco; entre leitor e audiência. Sarah Sheeva fará algo semelhante. Porém, no caso dela, a dose de messianismo aumenta drasticamente. Ela se torna, assim, uma espécie de Stand-up Tragi-Comedy-Prophecy.

3 de fevereiro de 2012

Quando o nojo se torna amor: quando Cristo desce ao Inferno para libertar Sísifo

O Ócio de Sísifo de Sandro Chia



O nojo parece um sentimento tão aterrador, mas, a bordo da roleta do cassino da alma, à mercê das probabilidades e dos destinos, o nojo não é o mais absurdo dos sentimentos a emprestar palavra à mudez da vida interior.

O nojo pode ter a face da pena,
Da ira,
Do desprezo,
Do pavor,
Do Preconceito
Da Inveja...

O nojo é bastante democrático ao selecionar suas fontes geradoras. Em qualquer caso, a fórmula do nojo é = distância x tempo. A Física tomou emprestada a equação do nojo e adaptou-a para uma proporcionalidade inversa, utilizando-a para medir a velocidade média ;) Quanto maior a distância, maior o tempo que se consegue ficar sem ter nojo. Para o enojado, a companhia de quem o enoja é um atentado violento ao pudor, quando não, um estupro.

Mas, e quando quem tem nojo descobre que o nojo que sentia era por ter confundido a seta de Cupido com o ferrão do escorpião? Aí, vai ser uma corrida contra o tempo para que o improvável não vire impossível. Pois quem é vítima do nojo, por mais que ame, tem, à espreita, a forte e tentadora presença da mágoa, oferecendo-se para matar a sede que o amor até então não teve competência de fazê-lo.

É difícil convencer uma vítima do nojo de que é amada por seu algoz! É difícil devolver a esperança a Sísifo!

Emprega-se a expressão “trabalho de Sísifo” para designar esforços inúteis. Isto porque o castigo de Sísifo, por sua rebeldia contra os deuses, foi empurrar, durante toda a eternidade, uma pedra em direção ao topo de uma encosta. O detalhe é que, prestes a chegar ao topo, a pedra era rolada ladeira a baixo por uma força misteriosa e irresistível.

Mas, no tempo de Sìsifo, ainda não havia nascido um novo tipo de força misteriosa e irresistível, que chega para inaugurar um nouveau régime.  Esta força é a fé. Ou, melhor dizendo, a fé era um artefato muito rudimentar na época de Sísifo.

Diante da fé, não há esforço inútil, como também não há esforço perfeito. Por isso, Cristo, quando de sua descida ao Inferno, pediu licença aos profetas para que Sísifo fosse o primeiro a ser libertado. Dizem ainda que o pedido feito a Cristo pelo bom ladrão, quando ambos estavam sofrendo a tortura da cruz, foi um eco de um grito de Sísifo por liberdade.
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