2 de setembro de 2013

Como a queda vira ingrediente da autonomia no abraço do Aikidô

Fonte: Jornal Livre


O ideal da plena autonomia, uma das heranças do Iluminismo, assim como outras utopias passa por um momento de autoquestionamento. O “governo ou regra de si”, tradução possível para esta palavra composta por dois radicais de origem grega, ao analisar suas pegadas e imaginar seus possíveis horizontes, inevitavelmente dialoga com outras “nomias” como a heteronomia (governo do outro) e a anomia (ausência de governo). E, neste diálogo, preconceitos, opiniões e símbolos, associados a estas ideias, são ativados, reativados e desativados num movimento caracterizado por forte dose de oscilação e incoerência.

Um dos símbolos mais comuns associados ao ideal de autonomia é o imaginário da ”máquina sem homem”. A máquina que possa agir completamente por si: um tipo de exterminador do futuro ou Matrix... Esse imaginário traz como subdiretório a ideia de que o perfeito funcionamento de um mecanismo autônomo requer ausência de sentimento.

O Aikidô, que embora seja chamado de arte marcial procura banir a guerra da composição de suas impressões digitais, questiona esta visão sobre uma autonomia que reduz o indivíduo autônomo a um autômato.

O automatismo não é algo inerente às máquinas como se costuma pensar. É um projeto calcado em anseios, esperanças, medos e terrores como costumam ser os projetos humanos. Em seu ápice, o automatismo poderia ser interpretado como propriedade de uma máquina que é simultaneamente produtora e produto. Outra forma de interpretar o automatismo pleno é encarando-o como momento em que a autonomia se olha no espelho e percebe que deixou de ser autonomia para se tornar anomia.

Por meio de sua simbologia,  o Aikidô reencontra espaço para abrigar no seio da autonomia a heteronomia. Isto equivale a enfrentar a tendência de silenciar o componente de passividade que habita a autonomia como se para governar a si mesmo o ser humano precisasse ser alguém que age sem se submeter de forma alguma à ação do outro.

No Aikidô, a pessoa que aplica a técnica (uke) e a que recebe (tori) tornam-se um composto, como se fossem dois radicais que se unem para formar uma nova palavra com um sentido que remete aos significados dos radicais isolados, mas o transcende. É possível pensar o uke e o tori como radicais envolvidos numa reação química onde ambos assumem o papel de reagentes e de produtos.

O sucesso de uma técnica aplicada, no Aikidô, depende não da submissão de um “oponente” como se este fosse um tipo de matéria-prima controlada e deglutida por uma máquina “vencedora” que busca de assenhorear do produto, reduzindo o “vencido” a um tipo de dejeto. No Aikidô, a técnica é um rio que caminha em fluxo e contrafluxo. Isto quer dizer que a queda ou submissão é oferecida ao companheiro de luta como oportunidade para que ele encontre, no espaço e no tempo, uma relação harmoniosa entre seus limites e seus deslimites. A recíproca é verdadeira no que se refere a quem aplica a técnica.

Esta relação circular que o Aikidô estabelece entre o ativo e o passivo redesenha o ideal da autonomia, que deixa de ser vista como refúgio solitário de autômatos no deserto da anomia, e passa a ser a constatação de que não dá pra ser autônomo sendo somente a polaridade ativa, dominante e controladora.  Não há liberdade para um ímã refém de um só dos polos. O governo de si mesmo requer capacidade para encontrar, com auxílio do outro, a energia potencial que habita a submissão e a queda, energia esta castrada pela visão distorcida de que cair é por si mesmo um mal (quando, na verdade, cair ou estar de pé podem ser benéficos ou maléficos dependendo da maneira como se cai e como se permanece de pé ).

De acordo com este ponto de vista, ser ativo significa não derrubar o outro, mas ajudar o outro a cair e, logo em seguida, aprender com quem está no lugar de “passivo” como se reerguer, como se reativar. Esta consciência do proveito que se pode tirar do fluxo harmonioso entre queda e reerguimento pode diminuir a angústia que nos aflige quando acreditamos que para ser autônomos precisamos ser autômatos.


E, neste percurso, vale a pena rever a ideia de Maquiavel de que é melhor ser temido do que ser amado, pois quem está disposto a aprender tem mais coragem de amar e menos medo de temer.

O Aikidô foi desenvolvido por Morihei Ueshiba (1883-1969), entre 1930 e 1960 e, combinando diferentes artes marciais, substitui a tradicional lógica do ataque e contra-ataque pelo movimento circular entre os polos passivo e ativo, dissipando a agressividade e o medo ligados à ideia de que só é só é possível estar em uma dessas polaridades.

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