By Karla Vidal |
A Antônio Maria
Durante a
cobertura do Galo da Madrugada, uma repórter perguntava a um menino de 4 anos
estourando se ele gostava de frevo
- O quê?
- Você gosta
de carnaval (mudou a pergunta para que o sim planejado por ela encontrasse um
atalho nas brechas do acaso-destino e se transformasse em resposta)?
- Gosto,
respondeu o guri de forma seca e adulta, como só as crianças sabem fazer.
- Então,
dança pra gente ver.
Segue-se
então um não respondido com o menear da cabeça do pequeno zorro; um não que nos
faz sorrir, como só o não da criança consegue ser.
Depois, a
jornalista repetiu o ciclo com uma garotinha que estava perto. Antes do sim,
ela já começou frevando e o zorro, contagiado, começou a trotar o frevo, como
se a timidez tivesse sido abolida do seu futuro dicionário.
O carnaval
do Recife tem dessas coisas. Consegue tirar sucesso da semente que havia sido
sentenciada a ser frustração. Por isso, devo ter achado tão bonita a cena vista,
na noite anterior,lá no Recife Antigo. Era um casal a suspender pelos bracinhos
sua nenenzinha de dois anos, para que ela não pisasse num rastro de urina
vertido por um cabrinha sem-vergonha que, entocado por trás de uma combe,
lutava para completar a difícil arte de mijar: difícil porque o dito cujo
estava todo enfaixado, fantasiado de múmia... Mas, aquilo era bronca safada...
E, mesmo não
sendo padre, tive vontade de absolver aquele Tutancâmon porque não queria levar
para a folia o peso de nenhum cânon.
Mesmo no
carnaval do Recife onde posso me fantasia à vontade com a fantasia de luxo da
desvergonha, a máxima do escritor Jack London continua válida: “é típico do ser
humano usar a medida com que se mede a si próprio para medir os outros”. Senti
isso ao ver um idiotinha recriminar um rapaz porque tinha se empolgado e
libertado os quadris para frever ao som de “Nos quatro cantos cheguei”. Por São
Alceu Valença! É pecado mortal fazer alguém, em pleno Recife de meu Deus,
sentir-se envergonhado por cair na tentação do frevo. E porque se envergonhar
desse cair que é certamente talvez o único no mundo que não exige paraquedas.
O rapaz se
afastou um pouco e passara a dançar de forma mais “comedida”. Tive uma vontade
de roubar a tesoura do passo de uma frevista e cortar o fio de preconceito e
mesquinharia que invisivelmente se infiltra até no ardente calor do frevo. Mas,
era-me impossível deixar sem um de seus passos aquela dançarina que, ao som de Maestro
Spock, fazia-nos lembrar que o carnaval é uma jornada de três dias pelas
estrelas com passagem de volta para uma ingrata quarta-feira e passagem só de
ida para a esperança de que em dezembro haveria mais.
Sim, pois,
como aprendi com o jornalista e compositor Antônio Maria, o carnaval do Recife
nasce junto com o Menino Jesus, não o Jesus de Praga, mas sim o Jesus de muitas
bênçãos que batiza com fogo e faz o mundo frever. E, ao menos, até o início da
Quaresma, Recife faz seu coração desmentir Drummond, tornando o mundo,
incluindo os Raimundos, nele cabível.
O palco no
Recife Antigo seguia estrondando, mas Spock sabia que não havia risco nenhum de
pane naquela Enterprise comandada por ele e habitada por tripulantes das mais
diferentes origens e destinos. Fafá de Belém, veterana, errava letras de
músicas, mas já era tarde... Ela já havia sido contaminada pela saudável mania
dos pernambucanos de convencerem o mundo inteiro a ninar com eles os frevos do
passado como se houvessem acabado de ser dados à luz.
Deve ser por
isso... Como nos lábios do Recife e Olinda as canções são eternas crianças,
elas são cantadas com pausas para balbucios. Algo do tipo: “Voltei Recife, foi
a saudade que me trouxe pelo braço. Quero ver parárá tanranran parará tanranran
parará tan Tomar umas e outras e cair no passo!”.
Spock chama
Luiza Possi para cantar ao som dos metais Madeira do Rosarinho. Parece que não
há quem não saiba cantar essa música, pois os que pensam que não sabem é por
estarem confundindo desconhecimento com amnésia temporária. A jovem, de cabelos
longos, trouxe consigo sentimento de tal intensidade que, por instante, deu a
impressão de Zizi Possi, que não estava lá, estar junto à filha cantando a dor
da injustiça da qual não escapa nem mesmo a “madeira de lei que cupim não rói”.
Um bobão,
perto de mim, perguntou a um de seus amigos (que, pelo sotaque e pela barba
ruiva, vinha de mares pertencentes ao litoral sul do Brasil):
- Qual a
sensação de ver todo mundo cantando as músicas de cor e você não?
- Me sinto
ótimo porque onde a letra me falha é que meu coração se encanta.
#Precisodizeralgomais
Aquele fora
que, de tão agudo, porém doce, merecia ser chamado de “dentro”, nem era pra
mim, mas fez-me cair a máscara e as asas de cera. E o rosto, por trás delas,
não era vergonha: era voo.
Spock
anunciou a partida da Enterprise. A primeira noite de carnaval no Recife
precisa terminar cedo pra o povo ter tempo de se preparar para o desfile do
Galo da Madrugada. Mas, ainda houve tempo para Fafá de Belém puxar o hino de
Pernambuco. O microfone estava desligado, mas era possível, ler, no telão, “os altos coqueiros de beleza estendal”
brotando dos lábios da paraense. Aquela cena meio que resumia o espírito do
carnaval pernambucano: nasce de sete meses com a vocação (teimosia) de forjar a
poesia do ficar mais um tiquinho, a poesia do não ir embora.
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