10 de fevereiro de 2013

A recompensa cruel e constrangedora de ler o texto do outro

Leitura - Antônio Hélio Cabral ( Brasil, 1948)
óleo sobre tela, 30 x 40 cm
O modo como lemos o texto de outra pessoa reflete – e como é sabido por quem bem o sabe não há reflexão que não traga em sua algibeira um bom punhado de espelhos distorcidos untados pelo caos – a miniatura do mundo e de suas esperanças que trazemos para brincar em nossos corações em substituição aos Legos e Comandos em Ação da vida.

Sim, interpretar um texto é brincar com os sentimentos dos outros!  O texto alheio torna-se, para quem o lê, uma extensão do seu céu particular, seja este céu o Céu, o banheiro, o closet, um disco de Céu, uma mensagem de voz do Cel ou um cartão postal de Seul.

Quem vai ler se depara com uma encruzilhada repartida entre a preguiça e o desafio e, mesmo optando por um dos caminhos, não tem como deixar de levar o outro ancorado em seu calcanhar de Heitor, visto que Aquiles não leem livros, pois são invulneráveis e não têm coragem de expor o calcanhar a tapa.

Durante o percurso da leitura, somos assaltados pelo dilema de Ulisses e como é grande a vontade de lá pelo meio do livro, isto é, no primeiro parágrafo, abandonar o projeto de retornar pra casa e ficar luxuriando com Circe e as sereias até que não sobre mais um ossinho que não tenha sido devorado pelas bestas-feras..

.E ainda me espicaça a coluna, diria o bem-aventurado leitor de boa-vontade, a irritante mania que tenho de prever o futuro. Repouso as mãos sobre o título de cristal e, por um portal de translucidez, vejo o futuro se erguer e jogar na minha cara que a continuidade daquela leitura é um esforço inútil.

Mas, como é sabido por quem bem o sabe, não há boa-vontade sem rebeldia e obstinação, e, assim, Ulisses, ou o leitor, viaja em rumo a sua jornada.

Na leitura do texto alheio, um dos momentos mais perigosos é quando o texto mostra sua face de ciclope e faz o leitor sentir-se um ninguém. Como suportar o fato de que amarei tanto uma leitura ao ponto de beirar a idolatria e me ver impelido a querer jogar tudo o que até então me eram caras verdades numa latrina qualquer, pero très chic visto ter sido importada de Flandres.

O leitor que se preza tem um vício miserávi de fazer do autor um ideal. E assim dá uma de Lois Lane e sai com o autor em direção ao oitavo céu para, do alto do maior edifício estelar que houver pelas bandas de lá, empurrar o Super-Homem para uma queda mortal, não pela queda em si, mas pela decepção de ter sido defenestrado após ter sido tão incondicionalmente amado.

É que o amor é incondicional até que o clímax do livro prove o contrário... Mas poderia ter sido pior, pois triste do texto que cai nas mãos de um leitor que sentiu seu amor não correspondido. Nestes casos, o autor, que já sofre por ser um fantasma a penar nas páginas bem-assombradas dos livros, será vítima da pior tortura que o leitor lhe pode infringir: a de ser, em virtude do que escreveu, confundido consigo mesmo sem pausa para o cafezinho, a despeito de ter se tornado um imortal da Academia Pernambucana de Letras. Isto porque, como é sabido por quem bem o sabe, tudo em Pernambuco é a maior coisa do mundo das Américas, incluindo o cafezinho e os amores não correspondidos: as lindas luas pernambucanas não me deixam mentir.

Ler é um exercício com dois pesos: o da crueldade e o da condescendência. E a arrogância maior, porém indispensável, do leitor é achar que terá, após o “término” do livro, força igual nos dois braços para carregar o mundo ou os mundos. Sinto te decepcionar, Raimundo, mas por mais sonho e esperança que o ler nos traga, nenhum livro apagará a parcela de imundo que há em nós. O máximo que fará é torná-la em bom adubo para as rosas falantes que, cada leitura, faz a presepada de plantar em nós.

Cada leitura, mesmo que seja a infinda leitura do mesmo, que não cansa de se reescrever no não-dito, no interdito e na desdita, é uma chance de reduzir o texto a uma transparência diáfana que permite olhar o outro como uma vida que, mesmo anencéfala, traz o penhor de uma melodia que faria o humilde Beethoven esperar ansioso pela enésima sinfonia, ainda que não tenha sido escrita por ele.

Ler é se dar conta de que algum de todos os nossos sentidos é defeituoso e, mesmo com estes falhos sentidos, não desistir de ouvir a sinfonia do texto como se fôramos Sherlock Holmes: com desconfiança, mas com respeito e aberto a uma segunda opinião: pois o que seria de Holmes sem o caro Watson?


Leitura - música composta por Mazinho, Gunane e Barney
Intérprete- Maria da Graça

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