22 de abril de 2012

Emil Cioran e o ataque terrorista do amor incondicional


Fonte da imagem: site Os Vigaristas



É difícil me contrapor ao pensamento de Emil Cioran. À medida que o leio, sinto como se minhas palavras e meus silêncios tivessem sido abortados antes mesmo da fecundação. Fernando Pessoa redime o ridículo, concedendo-lhe indulgência em forma de amor. Já Cioran não é piedoso com o ridículo, os excessos, os gemidos e a epilepsia do espírito. Contudo, mesmo sendo avesso a tudo que religião respira, ele não consegue fugir da função de inquisidor, condenando à “morte” todos os que não comungam de sua crença na impossibilidade da comunhão.

Tentativas de fugir da solidão existencial se tornam, no discurso dele, uma forma de as pessoas se forçarem umas as outras a compartilharem a opressão que as sufoca. Nesta perspectiva, o consenso se torna a vitória do vírus devastador da verdade, que ergueria seu trono perante uma multidão sem fim de mortos-vivos para os quais o privilégio da dúvida deixa de ser possível.

Edificantes são as palavras de Cioran quando expõem a tirania e a miséria que habitam dissimuladamente o coração de valores como a fé e a verdade. Ele consegue detectar como pode ser tomado pela lepra o lirismo presente em sentimentos que costumamos interpretar como o bem absoluto. Se bem que fica até difícil fazer um elogio a este filósofo, visto que considerar suas palavras edificantes significaria, sob o olhar dele, transformar estas palavras em monumentos ao terror e ao estupro do direito de duvidar.

Além disso, será sempre difícil ser sincero com Cioran porque ele considerará um inimigo todo aquele que falar perto dele sobre sinceridade, ideal ou futuro.

A verdade, os ideais, a fé. Esta tríade, para Cioran, roubou do ser humano o direito de se deixar profanar pela dúvida, pela preguiça e de se guiar pela lanterna da indiferença e do cinismo, passando adiante a tocha carregada pelo filósofo Diógenes.

Mas, Cioran leva tão a ferro e fogo estes sentimentos, como se neles se escondesse, pelos séculos dos séculos, uma conspiração para dominar o mundo. Ele encara os sentimentos que aspiram à transcendência como atentados violentíssimos ao despudor ou como colonizadores que querem fazer caber a pulso o latifúndio da eternidade no microcosmo da subjetividade.

Para ele, os mártires são fascistas em potencial que, por obra e graça do destino, terminam com seus pescoços cortados antes de despontarem para o estrelato. Mas, os mártires não foram, muitas vezes, pessoas que escolheram acreditar que a liberdade de expressão do indivíduo era mais importante que manter a cabeça no lugar às custas do respeito à violência institucionalizada que força cultura, convenção e espírito a serem partes integrantes de um amálgama?

Diante das ideias desconcertantes (talvez esse elogio agradasse minimamente Cioran) deste pensador, resta terminar o texto não com argumentos, mas com perguntas.

Só é possível fazer parte da existência dos outros como terrorista que, nas escoras da pressão e do totalitarismo, funda os alicerces de sua influência?

A eterna dúvida não seria também um tipo de êxtase fanático que nos assalta? O que torna tão certa a ideia de que o êxtase e o delírio são privilégios da busca pela verdade e que a dúvida é abrigo da liberdade e da ponderação?

Valores incondicionais seriam sempre imposturas de seres corruptos incapazes de enxergar a própria cegueira e dispostos a alastrar a tirania da verdade como um tipo de versão nostálgica da peste negra?

A incondicionalidade, além do sentido que Cioran lhe atribui, não poderia ser encarada como um “estar de passagem”? Explico-me. O amor incondicional, por exemplo, aquele que ama sem exigir nada em troca. Impossível, de fato. Afinal, tudo exigiria algo em troca... Esta é a lógica implícita ao pensamento de Cioran: é impossível caminhar nas terras do outro sem deste outro exigir algo em troca, sem cobrar pedágio. Porém, penso eu – e talvez esteja minimamente certo – se não fossem os gestos de amor incondicional, por mais diluídos e inevidentes que sejam, até mesmo os semáforos seriam inúteis. Aliás, todos os sinais seriam inúteis.

A lei e o terror não teriam força, por si sós, de fazer os sinais operarem corretamente. Em parte, os sinais são obedecidos (em parte são coação). Mas, em uma parte consideravelmente maior, são amor incondicional. É isso que torna possível a pessoas, independentemente de se conhecerem, optarem por se render ou não aos sinais.

Não atravessar o sinal vermelho pode ser cumprir uma obrigação, mas também é uma forma de amar incondicional e anonimamente alguém do outro lado do cruzamento, alguém que, muito talvez, não veremos mais. Da mesma forma, o amor incondicional pode ser entendido menos como ausência de condições e mais como o questionamento das condições.

Nesse sentido, é simples compreender o gesto de fazer o bem sem esperar algo em troca. Não esperar algo em troca significa menos um altruísmo ingênuo e desinteressado do que uma forma de expressar a indiferença aos condicionamentos vigentes ou, quem sabe, um modo de guardar memórias do tipo “além de mim mesmo” para no futuro ser capaz de, na senda de Epicuro, desintoxicar-se do "si mesmo" quando o “si mesmo” for uma grande dor (coisa que acontece com certa frequência para quem leva minimamente a sério os espelhos espalhados nos labirintos da existência).

A seguir, um trecho do instigante e controverso pensamento de Emil Cioran. Veja o texto na íntegra no blog Um Ano Existencialóide. Aproveito para, mais uma vez, agradecer a Raphael Tenório que, com suas reflexões tem estimulado reflexões do blog Acedia.

"Basta que eu escute alguém falar sinceramente de ideal, futuro, de filosofia, escutá-lo dizer “nós” com uma inflexão de segurança, convocar os “outros” e sentir-se seu intérprete, para que o considere meu inimigo. Vejo nele um tirano falido, quase um verdugo, tão odioso como os tiranos e verdugos de grande classe. É que toda fé exerce uma forma de terror, tanto mais temível quando os “puros” são os seus agentes." - Emil Cioran

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