21 de dezembro de 2011

O risco de o Natal ser esquartejado

Foto "Papai Noel está morto"

O Natal vem se tornando uma espécie de réu condenado ao esquartejamento. Seus braços e pernas, amarrados a valores conflitantes que, no coração, tornam-se fúria cavalar a dilacerar as gentes.

Amarrada ao braço esquerdo do Natal está a fúria cavalar do consumo, o deus falso que nenhum sacrificio humano conseguirá saciar.

As festas natalinas celebram o nascimento de Cristo, mas dialogam também com a celebração do sol e da luz, chamada, em culturas antigas, como a céltica, de sabá de Yule. Daí Yuletide ser uma das formas de se dizer Natal, na língua inglesa.

O problema é que, quando se converte o natal em época de consumo, troca-se a celebração do sol pela celebração do vampirismo. O consumo compulsivo é como o vampiro:

1. Solitário, deixa sua linha do tempo cheia de mortos à espera de um modismo que os ressuscite

2. Insaciável

3. Frio e sedutor

4. Um morto-vivo: o consumo compulsivo vive da sua própria morte. Pena que ainda parece longe o momento em que viver da própria morte será uma definição, no dicionário, para reciclagem.

O braço direito do Natal está amarrado à fúria cavalar da utopia, ao encanto das promessas. É triste quando a utopia se espelha no consumo. Nesse caso, a promessa se converte em dívida, juros e corrupção.

Mas, entenda-se. Estamos falando de fúrias cavalares. Consumo e utopia fazem parte do ser humano. Aquele é a imediação, esta, a mediação. Ambos são forças necessárias, mas que, em desequilíbrio, condenam o espírito à pena do esquartejamento.

A perna direita do Natal é puxada pela fúria cavalar da eternidade, a principal matéria-prima da publicidade. No Natal, queremos ser eternas crianças, como o eu-lírico da poesia "Versos de Natal", de Manuel Bandeira. A bem da verdade, o desejo de ser sempre criança não passa da vontade de ter sob controle a imagem no espelho. Tudo que a criança dentro de nós não quer ser é eterna.

Nem a criança e nem o velho, pois, desde que nascemos, estes dois dividem espaço em nossa alma. A criança não quer a eternidade, pois seu brinquedo predileto é a descoberta. O velho não quer a eternidade, pois do balanço entre o que se foi - a história - e o que permanece - a memória - tece a rede de sua sabedoria.

A fúria da eterna juventude é um rosto sem tempo.

A perna esquerda do Natal está amarrada à fúria cavalar do ceticismo. O ceticismo também é vital, é a desconfiança necessária para que a sedução do consumo, da utopia e da eternidade não atire a gente no abismo. O problema é que o ceticismo, quando em fúria, não se contenta em duvidar, querendo jogar fora a vitalidade do consumo, da utopia e da eternidade. O ceticismo furioso só suporta a companhia da solidão.

Não contente em ter crucificado o Cristo, a humanidade agora quer esquartejá-lo com suas fúrias de consumo, utopia, eternidade e ceticismo. Mas o lado mais franco do Natal é que, mesmo correndo o risco de ser esquartejado pelas fúrias, ele não desiste de conspirar para que a boa-vontade vença a morte.


Versos de Natal - Manuel Bandeira

Espelho, amigo verdadeiro
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.

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