23 de abril de 2016

Recatada, do lar e mantida em cárcere público

Friné em frente ao Areópago, 1861,Jean-Léon Gérôme.


Talvez a ideia de recato tenha nascido na Grécia Antiga, onde a arquitetura das casas desenhou o espaço feminino como uma área interditada ao intercâmbio com a rua. O androceu, lugar do lar reservado ao homem, era uma área aberta a visitas indiscriminadas, possuindo inclusive uma porta para a rua, mesmo que fosse utilizada somente como porta de saída.

Já o gineceu, numa direção contrária, foi concebido para ser uma metáfora em “concreto” do útero, sem contato com o exterior.  Mas, na verdade, trata-se de uma metáfora eivada de vício, tendo em vista que uma metáfora justa levaria em conta que a mulher dá à luz, não sendo, portanto, o aparelho reprodutivo feminino uma prisão sem escapatória, imagem distorcida de onde derivam outras como a de que o pensamento feminino não deve vir à luz ou de que resta a ela o silêncio resignado.

Certamente, talvez, a noite, a lua e o inconsciente são imagens associadas à feminilidade pela história e também pelo imaginário coletivo. Mas, o reforço dado à noção de que a luz lunar é mero reflexo da boa-vontade do sol é uma leitura de uma cultura patriarcal e monoteísta, cujo significado do poder está ligado a concentração e ao monopólio.

A noite não se alimenta dos restos da luz solar, mas, parece-me, convida esta luz a descansar no mistério. Porém, o ponto a ser cosido aqui é o do recato.

Sabe-se que a herança judaica considerava inadmissível que a mulher expusesse a moldura do rosto, isto é, os cabelos. Isto talvez seja por que as ondas capilares remetem a uma memória ancestral que o patriarcado lutou para varrer da história: a da associação figurativa entre a mulher e o mar (ou La Mer, como dirão os franceses).

A Mar, afinal de contas, é o lugar onde a vida tem origem e para onde convergem as rotas. É também o espelho do céu que, com a instituição do patriarcado, tornou-se morada dos deuses supremos e elitistas, que não se misturam com a telúrica, com as coisas do mundo ou do imundo, termo cunhado com o tom pejorativo que o Platonismo lega aos contrastes da natureza palpável e efêmera.

Além disso, a Mulher vestida de Mar está, na verdade, nua e através de seu corpo circulam todos os seres, o contrário da mulher-mônada (câmara secreta), imagem que a cultura patriarcal criou para isolar a potência vital feminina e sua capacidade de promover diálogos inusitados entre razão e emoção, entre o dia e a noite.

Deve ser do primado do patriarcado que deriva a imagem, ainda hoje endossada pela sociedade, de que quanto menor o traje, menor o recato. Ser recatada, nesta perspectiva pobre, é se contentar com o recanto. Uma mulher recatada seria como uma cebola, repleta de camadas de veste e de pudores que separam seu corpo do olhar externo e sua voz da arena dos debates.

É cruel pensar que, diante das transformações que vêm ocorrendo no teatro dos gêneros,  ainda há aqueles que insistam em resumir a dignidade feminina à imagem grega do recato, condenando as mulheres que interagem social e politicamente inclusive através de seus corpos.

A “mulher recatada” é a mulher mantida em “cárcere privado” na esclerosada memória do gineceu grego. Neste sentido, não é de se espantar que a “falta de recato” seja associada a gestos que marquem a inserção feminina na ágora, no espaço público, o que inclui o bar.

A Idade Média tem uma lição a nos dar a esse respeito. Como lembra Norbert Elias, eram usuais as casas de banho em que homens e mulheres compartilhavam, nus, o mesmo espaço, de modo similar ao que acontece nas praias de nudismo. Nesses espaços, mantinha-se submersa a noção de recato e ficava em suspenso o tabu da nudez.

O cenário atual tem investido em espaços onde se colocam em suspenso outros tabus, permitindo que homens exponham fragilidades e mulheres se dispam de fragilidades. São espaços de intercâmbio de características entre os gêneros, sem que o mapa da masculinidade e da feminilidade tenha obrigação de acorrentar suas coordenadas a quaisquer estereótipos.

Nos próximos anos, a expressão “mulher da vida” provavelmente ganhará outra conotação bem como a expressão “homem vivido”.  E, com esta mudança, o fato de a mulher expor o corpo ou tomar um porre deverá deixar de ser encarado como um convite ao insulto e outros tipos de violências físicas ou sexuais, como se só tivesse direito a ser tratada com respeito a mulher-gineceu. Do mesmo jeito, o homem que cuida da casa e das crianças ou divide as despesas com a mulher não será tratado como indigno de botar a cara na rua.

Certamente, porém, as mulheres que saem do gineceu rumo ao mar estão sujeitas ao impeachment instigado pelos defensores do patriarcado e, a exemplo da grega Friné, terão contra si erguidos tribunais escorados em acusações, no mínimo, desarrazoadas

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...