Fonte da imagem: Mashable.com |
A princípio, me empolguei com a “novidade” resumida pela
manchete “Primeira fotografia que um ser humano aparece foi tirada em 1838”,
publicada no blog Matheusleitao.com.br.
Porém, ao começar a ler a reportagem, qual foi meu espanto
ao ler o seguinte trecho:
“O site especializado em tecnologia Mashable publicou nesta
semana uma fotografia que, até onde se tem conhecimento, é a primeira em que um
ser humano aparece.
Tirada em Paris, França, em 1838, por Louis Daguerre, a
pessoa fotografada está de pé no canto inferior esquerdo, na calçada. Parece
estar recebendo o serviço de um engraxate, que limpa suas botas.”
E me perguntei: Como assim “a pessoa fotografada parece
estar recebendo o serviço de um engraxate, que limpa suas botas”?
Meu espanto se confirmou ao saber que a notícia deriva de
uma “original” publicada no site de tecnologia Mashable.com. Na notícia
original, o preconceito é mais gritante, pois nem sequer se menciona a
profissão do engraxate presente na imagem. Simplesmente se diz que na foto “o
ser humano em questão” está tendo suas botas engraxadas. Confira o trecho em inglês:
“This
picture, the earliest known photograph to include a recognizable human form,
was taken in Paris, France, in 1838 by Louis Daguerre. The human in question is
standing in the bottom-left of the photograph, on the pavement by the curve in
the road. He is having his boots
shined”.
Este caso aponta para um duplo questionamento ético, relativo
à ética jornalística e também à ética do tradutor. Certamente, o jornalismo
atual, com suas equipes reduzidas e pressionado pelo mercado, pelo tempo, pela
sede humana por crueldade, é um alvo fácil de preconceitos recônditos passíveis
de aflorar através de atos falhos como o cometido nas reportagens mencionadas. Arrisco-me a resumir a noção freudiana de ato falho: erro, geralmente expresso em confusões na fala ou na escrita, que resulta do conflito da psique entre o seu compromisso com o consciente e a pressão de conteúdos reprimidos pelo inconsciente. Segundo Freud, o ato falho está dentro dos limites da normalidade, é algo de fácil correção e que não é reconhecido como tal por quem o comete.
Porém, independentemente do atual cenário do Jornalismo,
pode-se dizer que a ética sempre foi desafiada por pressões de diferentes
ordens. Por este motivo, reconhece-se uma postura ética em momentos cruciais
como guerras e calamidades. O ser ético está muito ligado à máxima presente no
livro bíblico do Eclesiástico: “É pelo fogo que se provam o ouro e a prata”.
Entenda-se: ao citar a Bíblia não quero igualar ética e
moral. Longe disso, pois a independência da ética é que permite à sociedade
enfrentar os danos da Moral, quando ela se deixa levar pela inércia e pela
intolerância. Ao falar sobre ética jornalística, refiro-me ao cultivo da
habilidade de confrontar as certezas do proceder jornalístico com a burrice que
- por força da preguiça, comodismo, tédio, arrogância e ansiedade – tende a
coroar nossas mais caras certezas. Ética é o questionamento que habita a
fronteira entre nossas certezas e nossas incertezas.
Então, ao parafrasear um texto, preciso colocar na mesa
tanto as cartas de minhas certezas quanto de minhas incertezas, o que inclui
duvidar do que minha certeza me diz. Por força de preconceitos arraigados (dos
quais ninguém escapa, nem mesmo Robson Crusoé ou os habitantes da República de
Platão), podemos cometer atos falhos como o das matérias mencionadas. Cabe
então ao jornalista, revestido pela ética profissional, colocar suas certezas
sob suspeita. Isso vale para outras situações como a reprodução do que os
entrevistados dizem. As aspas, no texto jornalístico, são um grande atestado de
ética. Desafiam o jornalista a retomar um original que nunca mais será de fato
o original, pois é filtrado pelos valores do repórter e pelos vazios do
esquecimento.
Contudo, o compromisso de ser fiel ao original, por mais
utópico que pareça não perde sua validade. Isso porque a utopia - o inalcançável - tem efetividade histórica justamente porque nos impulsiona a rever e
questionar os parâmetros do possível, do real.
Ao continuarmos a leitura do texto da Mashable, percebemos
que ele caminha para uma revisão do seu infeliz início, ao mencionar que a
imagem traz mais pessoas, sendo que elas só se tornariam visíveis por meio da
aplicação da ferramenta Zoom à fotografia. De qualquer maneira, tanto no texto
em inglês quanto no texto em português, a informação que ganha maior ênfase é
atravessada pelo ato falho, que só será abrandado bem mais adiante.
A notícia se deixa pautar pelo ato falho de preconceito e
transforma a informação correta num apêndice. Isso gera, inclusive, uma falha
de apuração jornalística, pois somente ao final da reportagem (da Mashable),
tomamos conhecimento de que a fotografia foi feita de uma rua cheia de gente,
mas que a imagem dessas pessoas não foi captada pela câmera.
Bem, independentemente de juízos de valor, as reportagens da
Mashable e do blog MatheusLeitao careceram de uma revisão não só textual, mas
ética.
Veja os textos publicados
Pela Mashable
Pelo blog Matheusleitao
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