8 de junho de 2011

Quando a comédia se converte em censura

Máscara do teatro grego - aproximadamente 350 a.C


Uma definição de perversão que me agrada foi dada num dos programas da série Café Filosófico, da TV Cultura. O perverso seria uma pessoa que atravessa o rio que conduz ao Hades (o país dos mortos), mas, para isso, em vez de pagar ao barqueiro, toma dele o remo, o mata e se apossa do barco, desprezando-o depois de atingir o destino pretendido.

Diante de tantas críticas à censura, como as que vem ocorrendo, é necessário se manter alerta para os truques perversos da censura. Não raro ela mata o barqueiro chamado Espírito Crítico e toma conta de seu barco, pervertendo em seu percurso o ideal da liberdade de expressão.

Alguns programas de comédia têm recaído na perversão. Em nome da liberdade de expressão, deturpam-na.

Sabe-se que é da natureza da comédia sua raiz comum com o preconceito e com a miséria humana. Se na tragédia, a condição humana miserável cultiva a comiseração, na comédia, cultiva o riso. Seria então hipocrisia a censura à comédia por ela trazer à luz preconceitos e misérias do ser humano.

O que é danosa é a tendência, que se percebe em parte do atual cenário da comédia brasileira (especifico o Brasil não para exaltar a comédia internacional, mas para me ater ao universo que melhor conheço), de ocultar sob o véu do riso atitudes de censura.

O gesto de comédia traz um caso particular não para colocá-lo no palco das exceções, conferindo a ele o peso da marca da anormalidade. Este tipo de postura não é a de um comediante e sim de um fariseu, que só consegue se enxergar belo no espelho se, ao fundo, a miséria é mais nítida que sua própria imagem.

O gesto da comédia aponta a miséria do outro para ironizar a miséria deste próprio gesto. A comédia é uma perversão sadia. Rouba o barco do fariseu para atingir as margens da emancipação humana.

A comédia trabalha o estigma não para que se ria dele. O alvo do riso, na verdade, é o dedo que aponta o estigma alheio. Por isso uma das estratégias mais comuns do comediante é fazer uma piada sobre si mesmo ou fazer uma piada sobre a desventura de outra pessoa, revelando, ao fim, que ele mesmo é parte de tal desventura.

Quando o comediante aborda um determinado estigma social, pura e simplesmente para lançar sobre este estigma a lente de aumento da anormalidade, não está fazendo graça, mas sim crueldade. E, pior do que isso, está alimentando a chama da censura, a principal adversária histórica da comédia.

Comediantes que, para provocar riso, afagam, no ego alheio, a falsa e hipócrita sensação de “Eu sou normal e os outros não”, estão desenvolvendo uma censura disfarçada de comédia. Na verdade, estão plantando no riso decretos ditatoriais do tipo: Não seja assim ou é proibido ser assim ou, ainda, é anormal ser assim!

A noção de censura tem sido restringida ao campo da comunicação. Mas, numa análise mais profunda, a liberdade de expressão, ameaçada pela censura, diz respeito não somente aos comunicadores. Como direito fundamental está relacionada aos demais direitos fundamentais, dentre os quais o direito à livre circulação e a se ter preservada a imagem.

Neste sentido, fazer escárnio de determinado grupo social, por uma característica física ou cultural, não deixa de ser uma forma de cercear a liberdade. Assim acontece com as piadas que têm como "fundo musical" o impulso de determinar qual tipo de pessoa é digno de fazer ou deixar de fazer algo.

O riso causado pelo grotesco faz parte da comédia. O que não faz parte é a substituição da categoria do grotesco pela da limitação. Para entender a diferença, basta pensarmos que qualquer tipo humano pode abrigar o grotesco.

A palavra grotesco surge no século XIV quando escavações descobrem em Roma aposentos subterrâneos de um palácio da época de Nero. Nestas grutas, foram achadas imagens metade gente e metade animal ou metade alguma figura mítica.

Por esta razão, grotesco refere-se à dimensão distorcida implícita às ações humanas. O que é risível no grotesco é que ele revela que o ser humano é em parte humano e em parte alguma coisa de indefinível.

Grotesca não é a feiúra, mas sim os contorcionismos que ela faz para se encaixar no mito da beleza. Do mesmo modo, o que se entende por beleza pode ser grotesco ao serem revelados os contorcionismos que são feitos para que determinado mito de beleza se institucionalize como verdade.

São estas distorções que a comédia mira enquanto objeto e não a característica física em si. Rir da limitação dos outros não pertence ao terreno da comédia, mas da ausência de auto-reflexividade. Pois, quem fica mais do que cinco minutos diante do espelho, não sai sem descobrir uma nova limitação.

Alguns comediantes têm confundido a presteza de pensamento com a ativação banal de preconceitos. O ciclo cômico é abortado na metade - ou antes, até (isso não deixa de causar riso, mas, neste caso, não de comédia, mas sim, de escárnio).O ciclo cômico completo tem como combustível o preconceito, não para nutri-lo, mas para fazer com que ele se consuma.

Lembro-me de uma entrevista de Bruno Mazzeo no Programa do Jô, na qual eles relembraram como Bruno havia se tornado fã do Capitão Gay, um dos personagens de Jô Soares.

Neste exemplo, percebe-se a diferença da comédia para a estigmatização. O Capitão Gay aborda um grupo social estigmatizado, mas rompe com o estigma. E o rompimento não se dá banalmente, por meio de uma defesa explícita, mas sim por meio da construção de um questionamento implícito: Por que não pode haver no gay o caráter super-heróico?

É este tipo de questionamento que tem faltado a parte do universo cômico do Brasil. A comédia atual tem trabalhado não com a interrogação e a dúvida, mas sim com a exclamação, dando a preconceitos o estatuto de certezas amplificadas.

Não seja este texto encarado como partidário do politicamente correto, outra forma de mascarar as contradições. Mas, seja encarado como uma reflexão sobre o refinamento e a maestria com que a comédia historicamente tem conseguido se situar entre as certezas e as manias de grandeza do épico e do trágico; dos preconceitos e dos pós-conceitos; dos discursos que se autodenominam verdade e denominam aos que a eles se opõem de mentira.

Na mitologia grega, o Hades não é só a terra dos mortos, mas o lugar do anonimato, das vozes que não conseguem mais ser ouvidas. Quando a comédia deixa de dar a seu alvo de análise o benefício da dúvida e troca o refinamento do riso consequente da reflexão pelo escárnio que anula a reflexão, ela se perverte e contribui para aproximar as pessoas do Hades, do anonimato.

Creio que é qualidade da comédia suspender juízos e certezas e fazer desta suspensão uma tribuna em que os marginalizados possam ter voz. Este seja, talvez, um dos maiores refinamentos da comédia: conseguir expressar-se politicamente, sem tomar partido. Nisto ela se faz nobre: perguntando-se sempre: O que é ser nobre? Ou, mais radicalmente, O que há de mal em não ser nobre?

A comédia é bela justamente por conseguir manter acesa a chama destas perguntas, remando na direção contrária dos discursos hegemônicos que focam as respostas e se pautam pelas certezas.

Agradeço a João M., do blog Eu só queria estudar, cujo texto "Merdas não se anulam, apenas se acumulam", impulsionou-me a fazer esta postagem.

No vídeo, a seguir, um exemplo do que considero uma expressão refinada da comédia:


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...