31 de agosto de 2011

Burlemarx não é um boulevard... Será que não?


Copacaba boardwalk by Christina Andrada


102 anos depois de Burle Marx ter nascido, estou tendo a cara de pau de falar sobre ele. E a expressão cara-de-pau é bem adequada para começar a falar deste artista para quem a natureza tinha de fato uma face.  Este raciocínio também é válido na contra-mão: a face traz em si marcas análogas às paisagens da natureza.

Como meus olhos são, paisagisticamente falando, virgens, vou me dar o luxo de falar sobre Burle Marx como quem psicografa uma mensagem vinda do além-mundo da despretensão (ou da pretensão, como se queira interpretar).

É recorrente, nas composições de Burle Marx, a sinuosidade. Não uma sinuosidade barroca e labiríntica, mas uma sinuosidade cíclica, com ritmo definido, semelhante à forma latina de finalizar a marcação de um compasso musical quaternário. Trata-se de uma forma geométrica que abriga a filosofia do eterno retorno.

Burle Marx proporcionou uma ida do homem à Lua bem mais completa do que a proporcionada pela corrida espacial. Sem armas e sem guerra-fria, ele nos permite, até hoje, caminhar calçados pelas fases da lua.

Como atesta o olhar fotográfico de Christina Andrada, o mesmo calçadão de Copacabana, banhado pelo fim de tarde, torna-se um chão de sertão semi-árido entrecortado por abismos de sombras. Quando eu tiver oportunidade de caminhar no calçadão de Copacabana, aposto que sentirei o pulsar cósmico do In Yang sob meus pés.

A obra de Burle Marx transforma-se conforme a distância que se abre entre ela e o olhar. De perto, é um jardim, mas, de longe, torna-se um quadro impressionista e, se nos afastarmos mais, um quadro expressionista que flerta com mapas geo-morfológicos e geo-climáticos.

Talvez, os jardins de Marx se inspirem nos mares de morros de Pernambuco ou nos mar do Rio de Janeiro. Mais especificamente na sinuosidade esculpida pelo amor inconstante entre as ondas e a areia. Mas, quem sabe a paisagem de Burle Marx não queira explorar a unidade secreta entre mar e morro: o mar-morro ou o morro-mar? Este esforço de conciliar contrastes se reproduz na tentativa de harmonizar, em seus jardins, a exuberância da vida-e-morte selvagem e os desertos ladrilhados.

Não pude deixar de perceber, no Burle Marx visto à distância, uma astronomia ao contrário. Se os astrônomos esforçam-se para ver em tamanho natural os pontos de luz do espaço sideral, Burle Marx convida a um movimento contrário, o de desprezarmos a dimensão macroscópica. Quem vê os jardins de Burle Marx de longe, acaba por vê-los se converterem em nebulosas. E, neste caso, o calçadão de Copacabana pode ser visto como a representação de galáxias distantes, uma ao lado da outra, entremeadas pela escuridão interestelar.

Em contrapartida, certos jardins de Burle Marx vistos de longe se assemelham a células durante seu processo de reprodução ou durante a fagocitose (processo de alimentação celular).  O jogo entre o macro e o microcosmo faz da obra de Burle Marx uma rememoração do elo ecossistêmico que une todos os seres. Neste sentido, os jardins lembram que somos parentes tanto das bactérias quanto das estrelas; somos tanto a exuberância como o deserto.

O compromisso de rememorar este elo universal faz com que a caminhada pelos jardins de Burle Marx se torne uma transição entre portais do tempo e do espaço. Vale, então, o exercício lúdico de dividir o corpo entre os dois diferentes lados desses portais, ficando, por exemplo, com um pé na Amazônia e o outro na caatinga; ou com um pé no Brasil e outro em cidades dos antigos impérios pré-colombianos.

Karl Marx, primo do avô de Burle Marx, criou certa ojeriza ao sonho e à fantasia, exilando-os na prisão representada pelo conceito de ideologia. Burle Marx preferiu em vez de estimular a rivalidade entre realidade (condições materiais) e imaginário, converter esta rivalidade em beleza.

A primeira vez que ouvi falar de Burle Marx foi há dez anos, durante uma de minhas primeiras entrevistas, com a paisagista Ana Rita Sá Carneiro. Quando ela falou em Burle Marx, eu, atravessado pelo espanto e pela ignorância, perguntei: O que é isso? Será algo tipo um boulevard?

De alguma forma, creio que ele sempre foi um primo segundo não só das árvores como de toda vegetação. Então a associação entre Burlemarx e boulevard seja uma senha para o acesso à conta secreta do destino. A maior riqueza que a obra de Burle Marx me proporciona até hoje é a de continuar me inquietando, de continuar convertendo em investigação os espantos e as ignorâncias. E, como diz meu professor, Antony Cardoso, sempre será válida a pergunta metonímica: O que é Burlemarx?



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...