28 de março de 2016

A garça e a correspondência descalada de um ressuscitado

Garça e por do sol 02
Foto de: LandNick


Graça
Por Linav Koriander

Pensei na melhor maneira de te consolar
De fazer o que eu digo chegar a teus ouvidos de um jeito
Que faça voar a sarça do teu ardor gracioso

A certeza da morte, contudo, parece tão sem sombra de dúvida
E, mesmo assim desártico, posso estar aqui contigo, nessas palavras, dispindo-me do meu corpo
E estar contigo no além-mar, despindo-me do meu porto
E ressuscitar contigo, pouco a pouco, dispondo-me de tais hortos

O ressuscitar é o meu “Eu te desafio” 
E pode estar certo que vou continuar te desafiando
A seres tua habitual inteligência secreta, persistência misteriosa, elegância discreta
A me trazeres satisfação com o melhor seguir em frente que puderes revestir

Daqui, de onde ressuscito aos poucos, ponho em ti o alvo de minha admiração mais certeira
E nenhuma alternativa conseguirá desmentir qualquer estrela da constelação dos teus passos

Tenha paciência, porque a ressurreição demora um porto
Mas devo te dizer que, daqui, de onde a demora reza,
Cada vez que a nota aguda da alegria aira teu ser
O nosso reencontro vai encorpando o gosto do “parece que foi ontem”

Os bons-dias, tantas vezes, saturados do mesmo sol minguante
Encontravam, num comentário besta qualquer, uma brecha para sair
E te fazer rir até encontrares aquela parte de ti que tem motivo para continuar sonhando

Na verdade, nunca foi preciso razão alguma porque nenhuma riqueza, reino ou língua estrangeira
Seriam capazes de me fazer decidir não ressuscitar

Ressuscito cada vez que decido
E não me canso de decidir quando o assunto é te ver feliz

Ditador confesso,
Decido desdizer tuas dores
Com a melhor doçura que já pousou nestes lábios
Te ler feliz, com a força das armas que só as entrelinhas da Costa Rica são capazes de exportar

Faz as pazes comigo e acelera a reação química que me está ressuscitando

Meu silêncio não vai desistir de tramar a coincidência de nossas ressurreições
Não necessariamente agora,
E, por enquanto, seja teu estar vivo o melhor presente que meu passado e futuro podiam querer

Encontrei um cartaz  e nele estava escrito “Procura-se Vivo e Lindo” 
Estava numa encruzilhada onde se encontravam a rua da alegria, a do sol, a da aurora e a da saudade
E todas elas me prometeram que
A distância não é capaz de me impedir de pagar o apreço
Do teu resgate
Até porque teu brilho humano e controverso é capaz

De me fazer ressurgir antes e depois da procura

25 de março de 2016

Uma nova chance para Pilatos




Ouvindo a narração da Via Crucis, transmitida, ao vivo, da Catedral de Aparecida, notei como o texto procurava mostrar que não havia sido escrito com caneta e papel, mas sim com lupa e carne. Os detalhes das torturas ressaltados telescopicamente: a carne lacerada, os nervos e ossos atravessados não só pelos pregos, mas pela omissão e pela canalhice do mundo.

Um quê de sadismo? Certamente talvez. Contudo, faz parte da arte vivenciar a ferida alheia elevada à septingentésima potência sem que nossa pele sofra nenhum arranhão.

No martírio de Cristo, o riso e a dor travam uma batalha decisiva. Comédia e tragédia ficam em dúvida sobre o que são diante de ações dramáticas nas quais o riso ri da dor, transformando-se em escárnio, e a dor, espelhada na fácies hipocrática do riso doente, torna-se horror.

O narrador da Via Crucis que eu entreouvia, deitado na cama, falou algo que me prendeu a atenção: “Cristo cai pela terceira vez com a cruz. Todos os que o cercam são, nesse momento, Pilatos, omissos, e optam pelo gesto fácil de lavar as mãos”.

E perguntei-me: Como não ser Pilatos? Pilatos tinha outra escolha a não ser ser ele mesmo? Ele tinha poder, mas não tinha porque o poder lhe era o poder delegado do alto

Ele deve ter pensado com os botões de sua túnica: “Este Cristo é admirável. Em outro momento, seríamos amigos e jantaríamos juntos. Mas, no atual contexto, o que posso fazer é deixar que ele seja um pouco martirizado e, assim tentar aplacar a sede de sangue do povo.”

Mas, a sede de sangue não foi aplacada porque não era sede, mas conveniência. Convinha a morte de Cristo aos interesses dos poderosos e também ao interesse da população de ver no chão uma pessoa que ela mesma tinha alçado à posição de deus-esperança

Lavar as mãos é a fórmula da tragédia, que habita o local onde decidir é impossível

Se a pessoa tem o poder sem tê-lo
Se ama sem amar
Se quer sem querer
Se se sacrifica sem se sacrificar
Nestes “ses”, resta a opção de lavar as mãos

Pilatos é o ápice da tragédia, na narrativa de Cristo. A figura de Jesus, mesmo tendo sido totalmente desfigurada, não é, ao fim, uma figura trágica, porque ele exerceu o tempo inteiro o poder de decisão, tomando decisões que, até hoje, desconcertam, por oscilarem na fronteira discursiva entre a lucidez e o absurdo, a exemplo de “amar o inimigo” e “perdoar quem te mata”

Pilatos não tinha como decidir. Percebendo a tragédia de sua condição, o próprio Cristo chamou atenção para o fato de que o mal maior não estava sendo cometido pelo representante romano, mas sim por quem o tinha acionado

Ser como Cristo ou como Pilatos?  Talvez a pergunta de nossa época, durante os próximos dias, pelo menos, não seja esta, mas sim: Como decidir?

Acho que existem muitas pessoas de boa-vontade que têm buscado e, em certa medida, encontrado, lugares intermediários entre o sacrifício total de Cristo e a omissão de Pilatos. Mas, nossa herança trágico-cômica, ainda tende a encarar como verdade os extremos. Neste sentido, sacrificar seria abrir mão de si mesmo, anular-se, restando a quem não está disposto a isto omitir-se

Certamente talvez, sejam possíveis sacrifícios que não anulem a nós mesmos e que ajudem o outro a não cair numa zona de auto-anulação. E também é possível privilegiarmos a nós mesmos sem lançar o outro na zona de anulação


E nada do que eu disse anula o valor das decisões de Cristo, que, até hoje, abalam os tronos e os altares dentro e fora de nós, ajudando-nos a redimir os sacrifícios extremos e as omissões extremas na história e na alma

23 de março de 2016

Le jeûne et la prière par les inutiles (Jejum e súplica pelos inúteis)

Arte de Sylvain Grand'Maison


Tentei me abster da fome, mas não pude
E, logo na primeira linha, percebo que o jejum é inútil
Mas, ai do mundo sem os inúteis, que, na maior parte das vezes,
São Indispensáveis
Pensemos, agora, em tudo que nos é inútil
Ou em todos que nos são inúteis

Temos por hábito inutilizar as pessoas
Porque se elas fossem o tempo todo úteis (muito úteis)
Seria insuportável o peso do cálice em nossas almas

Contudo, existe a tendência de exagerarmos na dose
E inutilizarmos os outros até torná-los de fato inúteis
E aí esquecemos que nos momentos cruciais, e também nos ressurrecionais,
É sempre um inútil que está por perto sendo indispensável
São os inúteis que nos salvam, sem ser messias
Que nos acendem a potência, sem ser super-homens
Que nos recriam, sem ser deuses
E nos amam ardentemente como só os aquém-do-homem são capazes de fazer

Eis a razão do jejum: devolver a dignidade aos inúteis
Porque normalmente os que nos são úteis são apenas cúmplices da alegria,
Do vinho, da pança cheia e da soberba

Os inúteis se permitem estar invisíveis e nos fazem companhia
Na alegria que nutre o coração em vez de superavitar o balanço contábil da vaidade
Na dor que, à luz do abraço inútil e invisível, lembra-se de que existe e se esquece de não passar

Ingrato o trabalho dos inúteis que nos oferecem remédio e são vistos como quem nos deseja ver doentes
Que esperam acordados até o final dos tempos e são vistos como articuladores do Dia do Juízo
Que não são vistos e são vistos como indignos de serem vistos

Os inúteis são capazes de nos amar verdadeiramente
E se abstêm do seu próprio existir para estar a nosso lado
Incógnitos nas maçantes mesmidades do cotidiano
Perceba que, muitas vezes, certamente talvez, nós cagamos e os inúteis é que dão descarga

Muitos inúteis pegam o trem e não retornam
Porque alguns úteis decidiram apertar o gatilho de um tic-tac maldito
Outras (os) inúteis são jogadas (os) escada abaixo
Porque algum útil decidiu ser macho e esquecer de ser homem

O jejum é importante quando significa que estamos dispostos a deixar de
Nos empanturrar de nós mesmos
E preparar um banquete para receber de abraços apertados
Cheios de constrangimento terno
 Nossos queridos e ilustres inúteis

Que chegaram cansados, vindos das longínquas terras do “ao nosso lado”

21 de março de 2016

O amor proibido entre o vermelho e o azul em tempos de Impeachment

Arte de Konstantin Dimopoulos



Depois que o feitiço da ditadura foi instaurado, de um golpe só [e solitário],

Os seres humanos brasileiros foram convidados a se obrigarem a tingir seu sangue de azul

Abriu-se uma licitação para decidir qual remédio seria utilizado para vacinar a população

Concorriam pílulas de Viagra, pirulito Samblue e Injeções de Nazi-recalque

As rosas vermelhas, com medo de serem linchadas, decidiram florescer medrosamente azuis

Até mesmo a Ferrari sugeriu que a cor vermelha abandonasse a bandeira italiana tamanho o receio de ser considerada subversiva

Só não se sabia como ficariam as relações diplomáticas entre o Brasil, a França e os demais países que traziam o vermelho em suas bandeiras

Difícil foi convencer o sistema nervoso parassimpático a impedir as bochechas excitadas ou envergonhadas de ficar ruborizadas

O pastoril chorou ao ver seu cordão encarnado rumo a um exílio forçado em Berna

A vermelhidão do pôr-do-sol tentou se esconder na tintura dos vinhos ocultos na calada das adegas, mas as adagas da intolerância são dotadas de um GP-SS quase infalível, não fosse um poderoso vírus, cor de liberdade

Depois de três dias de instaurada a ditadura, o vírus atingiu suas duas primeiras vítimas. Elas sentiam dores enormes nas articulações quando tentavam puxar gatilhos ou acionar armas de efeito imoral

O DOI-CODI tentou ressurgir do fel, mas parou de doer, inutilizado pelo vírus

Outro sintoma da virose era uma atração incontrolável de pessoas vestidas de azul por pessoas 
vestidas de vermelho (e vice-versa). Era uma atração doce, sutil e libidanosa como o vermelhazul da aurora.

Quanto mais divergentes eram os pontos de vista destas pessoas, mais convergência havia entre seus olhares: meros disfarces de um futuro abraço capaz de reconciliar de uma vez por todas o fogo e a lua azul de Sinatra

Em sua fase aguda, as pessoas atingidas pelo vírus emitiam respeito e transpiravam franqueza e conseguiam apagar as fogueiras da inquisição com hálito cheirando a Halls azulvermelha

Quando se davam os corpos, os “inimigos” tornavam-se capazes de ressuscitar livros e obras censurados


Vermelho e azul enroscados tornavam-se uma nudez à prova de impeachments e capaz de inspirar a faixa de gaza a se transformar em faixa de pedestres com potencial para a usufruir do direito sagrado ao gozo supremo dos mortais.




14 de março de 2016

Impeachment, opinião pública e descodificação aberrante



Carl Rose - Mr. Biggott


No final dos anos 40, as pesquisas de Eunice Cooper e Marie Jahoda investigaram como os leitores recepcionavam a propaganda anti-preconceito na história Mr. Biggott, por meio da qual o artista Carl Rose utilizava o humor/ironia para desconstruir o antissemitismo.

Cooper e Jahoda detectaram uma nova modalidade do não-entendimento que não está relacionada ao intelecto, mas sim à resistência de quem lê a ter seus pressupostos abalados. O não-entendimento nesse caso funciona como mecanismo de preservação da auto-estima ou mesmo de defesa do orgulho ferido e é chamado de “descodificação aberrante”.

Nessa linha, a interpretação da mensagem é comparável a uma carga elétrica. Assim como as cargas geram em torno delas um campo elétrico, as mensagens também se inserem num campo, que pode ser de aceitação ou de recusa. E a inserção num desses campos pode se dar de maneira aberrante. Isto quer dizer que a audiência pode considerar a mensagem mais análoga a suas opiniões do que de fato a mensagem é ou vice-versa. As consequências são, respectivamente, a assimilação ou o contraste da mensagem.

A descodificação aberrante e seus efeitos de assimilação e contraste se aplicam ao debate em torno do atual cenário político brasileiro.

Diferentemente dos estudos da narrativa de Mr. Biggott, seria necessário estudar não a resistência a abandonar o preconceito, mas sim a facilitação da adesão ao preconceito. Exemplo disso é a proliferação de mensagens falaciosas cujos comentários nas redes sociais em vez de trabalharem em prol da reflexão, operam unicamente no sentido de reforçar campos de aceitação ou de recusa.

É o que ocorre quando a pessoa afirma que uma determinada figura pública não afirmou ser a favor da pedofilia e surgem comentários dizendo que ao afirmar tal coisa se está incentivando a pedofilia. Extrapola-se o raio de ação da opinião alheia vitimando-a com calúnias que, em meio ao caos abobalhado das redes, passam-se por meros “comments”. E tome curtir e emoticon pra cima pra disfarçar um discurso subjacente de incitação de ódio.

Em outra direção, tenta-se subjugar o poder de recusa. É o que ocorre, por exemplo, quando o indivíduo tenta argumentar que é contra o impeachment quando este remédio não respeita os parâmetros constitucionais e, pelo simples fato de levantar este argumento, é tachado de corrupto.
Algo semelhante ocorre com a participação nos protestos e a interpretação aberrante de que quem deles participa é um “brasileiro de verdade” e quem não participa é “cúmplice da bandalheira”.

Cooper e Jahoda identificaram que o não-entendimento pode ser máscara do desejo de permanecer aderido a preconceitos. No contexto atual, com auxílio refinado das redes sociais, observa-se uma espécie de ultra-entendimento. As mensagens são “entendidas” como mais claras do que realmente o são porque troca-se a reflexão e o entendimento pela ação de tomar a palavra do outro como deixa para dar vazão a nossos veredictos pré-datados. A mensagem alheia é transformada em alto-falante para repercutir o eco enfadonho das podreiras que jazem nos galpões de nossa futilidade reprimida.

O que Cooper e Jahoda achariam estranho, talvez, é que os preconceitos difundidos pela descodificação aberrante no momento atual não são privilégio dos mais velhos. Contrariamente, são preconceitos que se apresentam ainda mais arraigados no coração de jovens.

Desconfiar do nosso próprio entendimento é sempre saudável, embora doloroso e muito incômodo. Mas, é um exercício que estimula a liberação de paz e honradez na corrente sanguínea da sociedade.



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